Título: Chávez: 'Todo poder à comunidade'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 22/01/2007, Internacional, p. A8

Depois que Hugo Chávez anunciou que a ¿explosão revolucionária do poder comunal¿ será o principal motor do segundo mandato, a máquina política de seu governo colocou-se em movimento, ontem, para produzir um terremoto institucional que o presidente venezuelano costuma comparar aos sovietes da Rússia da Revolução de Outubro de 1917. Em vários pontos do país, lideranças sociais reconhecidas e puros cabos eleitorais do governo deram os últimos retoques para formar os Conselhos Comunais, entidades de bairro de maior musculatura que, com verbas disponíveis para realizar obras e promover melhorias, ameaçam devorar a parcela mais suculenta das atribuições de prefeitos eleitos.

Numa petro-revolução onde não faltam verbas fabulosas para gastar, os Conselhos surgem num terreno fértil onde a dificuldade não é conseguir dinheiro - mas gastar direito aquilo que se recebe com fartura. Embora estejam abrigadas numa versão um pouco melhorada das favelas brasileiras, as entidades de bairro da Venezuela costumam receber recursos do governo até para reformar e construir residências - desde um conserto de telhado até uma reforma completa, quando o imóvel inteiro é colocado abaixo e outro casa nova é erguida no mesmo lugar.

O Estado assistiu, ontem, à uma reunião na Comunidade 12 de Outubro, localizada depois do penúltimo ponto do Metrô de Caracas, onde foram acertados os detalhes finais para a formação do Conselho, que deve ser escolhido por voto dentro de 15 dias.

O comparecimento, de 50 pessoas, foi considerado médio. Equivale a um morador para cada grupo de dez casas do bairro, mas não é um número alto. No ano passado, quando foram escolhidos os coordenadores de áreas de atividade da comunidade - saúde, infra-estrutura, clubes de mães e outras -, compareceram 700 pessoas. Ali Chávez teve 73% dos votos para presidente, diante dos 63% na média nacional.

A situação da comunidade ajuda a entender por que as organizações de base constituem uma realidade poderosa na Venezuela, o que explica o interesse de Chávez em mantê-las a seu lado.

Os líderes comunitários não exibem listas de reivindicações, mas melhorias realizadas. Julia Ramírez, uma senhora de passadas rápidas e discurso muito articulado, é capaz de percorrer o lugar para mostrar uma escadaria de 300 metros em fase final de construção, aponta para casas reconstruídas, fala de um telhado refeito. Ela também admite que mais de uma vez uma reforma teve de ser refeita e mesmo assim o serviço seguiu ruim. ¿Não temos controle dos gastos feitos e nos cobram por aquilo que não nos entregam¿, queixa-se.

¿Muitas pessoas só vem às nossas reuniões por causa do dinheiro¿, afirma uma das presentes, a professora Zuleide Gutiérrez. ¿Elas não entendem que se trata de um processo político, que as melhorias levam tempo para sair.¿

Para Zuleide, ¿não faltaram verbas nos últimos anos. Mas houve muito desperdício. Eu gostaria que o `Comandante¿ (ela não fala presidente) viesse a nosso bairro para ver o que acontece. Não é nada do que ele está pensando.¿

Mesmo porta-vozes respeitados da oposição, como o jornalista Teodoro Petkoff, enxergam ¿virtudes interessantes na proposta¿ de instauração do poder comunal. Ontem, durante o programa Alô, Presidente, Chávez comentou que ¿na Rússia do tempo dos bolcheviques se dizia: `Todo poder aos sovietes.¿ Agora na Venezuela nos dizemos: `Todo poder aos conselhos comunais¿.¿

No mesmo programa, retomou seus ataques aos EUA. Reagindo a uma declaração do porta-voz do Departamento de Estado, Tom Casey - que manifestou a preocupação de Washington com a concessão de plenos poderes a Chávez, por meio da Lei Habilitante -, o presidente venezuelano foi enfático: ¿Vão para o inferno, gringos! Go home! Go home!¿

Para além da retórica, a dúvida essencial reside na capacidade do governo Chávez em conviver com movimentos sociais autônomos, já que até os sindicatos - que em sua maioria apóiam o governo nas questões políticas - enfrentam uma política agressiva para transformá-los em correias de transmissão da política oficial.

¿O governo não gosta de organização independente nem de mobilização com bandeiras próprias¿, afirma o economista Haleis Dávila, líder de um movimento de inquilinos de Caracas, onde ativistas ligados ao governo anunciam o propósito de formar um Conselho Comunal de Inquilinos. A outra dúvida é prática. Ao ganhar nova estatura, os Conselhos terminarão por destruir carreiras e ambições que se abrigam nas prefeituras, alvejando o próprio esquema de aliados de Chávez, que domina a maioria das prefeituras do país.