Título: O bode na periferia
Autor: Canuto, Otaviano
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/01/2007, Economia, p. B2

A economia mundial, em seu conjunto, cresceu nos últimos cinco anos mais do que em qualquer outro qüinqüênio desde a 2ª Guerra Mundial. Para 2007, as projeções diferem apenas quanto ao grau de uma provável desaceleração, sendo majoritária a opinião de que estaremos diante de uma simples 'correção no meio do ciclo'. Onde procurar riscos? Há reconhecidas forças poderosas e interligadas impulsionando o crescimento global. De um lado, tem-se a duplicação da força de trabalho tornada disponível com a incorporação da Ásia e da Europa Oriental, em combinação com as inovações tecnológicas que permitiram a redução nos custos de coleta, análise e transmissão de informações. Essa incorporação de pessoas e regiões está se dando com rápido aprendizado tecnológico local e aumentos de produtividade. De outro, há a capacidade de criação de liquidez na economia norte-americana. As colossais reservas em dólares acumuladas pelo resto do mundo voltam em grande medida para os próprios EUA, sob a forma de aquisição de seus ativos, mas a transferência de propriedade de dólares já teria significado aperto para os setores que não são destino desses recursos, não fosse a capacidade de financiamento e geração de liquidez exibida pelo sistema financeiro desse país. Trata-se de algo que não pode ser explicado apenas com a leitura de que o afrouxamento monetário norte-americano, depois do estouro da bolha acionária em 2000, se alongou demasiadamente. A inundação de liquidez presente nos volumes de depósitos bancários das famílias e nos balanços corporativos, a despeito da subida 'paciente e medida' das taxas básicas de juros pelo Fed desde 2004, não pode ser explicada sem se levar em conta as inovações financeiras, a capacidade de alavancagem de portfólios, o exercício contínuo de arbitragem financeira, bem como a credibilidade adquirida pela política monetária nos EUA. E quanto à possibilidade de alguma parada súbita no financiamento externo norte-americano e desvalorizações abruptas do dólar, já que a atuação conjunta das forças subjacentes à expansão global tem implicado déficits significativos em conta corrente e no balanço básico de pagamentos dos EUA? O peso de bancos centrais estrangeiros nos fluxos reduz a probabilidade de pânico e comportamento em manada, havendo, por parte dos principais atores, convergência de interesses em torno de ajustamentos graduais. O desempenho macroeconômico projetado para a Ásia e a Europa, em simultâneo com o desaquecimento nos EUA, tem reforçado a esperança, se não de 'descolamento' ou troca de locomotiva, pelo menos de ajuste progressivo. Que tal a hipótese de que o estouro da bolha imobiliária norte-americana irá prostrar o consumidor doméstico e provocar uma depressão? Estariam as estruturas patrimoniais alavancadas sobre bases frágeis, ao contrário da crença de que a transferência de riscos - mediante derivativos de crédito e outros - tem ensejado melhor gestão e menor vulnerabilidade sistêmica a choques? Os dados recentes sobre o desempenho imobiliário e macroeconômico mostram, até aqui, evidência contrária às predições de catástrofe. Além disso, a capacidade de reação a diversos choques recém sofridos (estouro da bolha acionária, Enron, terrorismo, etc.), sem quebras em cadeia no sistema financeiro, sugere higidez - e não fragilidade - na pirâmide de ativos financeiros. E quanto a preços de commodities - petróleo e gás em particular - e a correspondente vulnerabilidade em relação a eventos geopolíticos em regiões produtoras? A queda recente dos preços do petróleo, por exemplo, mostra que, em última instância, o mecanismo de preços funciona. Assiste-se a um paradoxo: membros da Opep que têm utilizado politicamente o produto não têm resistido à tentação de descumprir acordos de redução da produção, por conta de compromissos de gastos assumidos com a suposição de que os preços permaneceriam nos patamares extremamente elevados. O maior risco para o cenário benigno, a nosso juízo, vem das economias avançadas: protecionismo! Embora a recém-acentuada assimetria entre rendimentos do trabalho não qualificado e do capital, nesses países, decorra de vários fatores - tecnologia, inclusive -, o alargamento global da força de trabalho nas fronteiras do sistema pode virar o bode expiatório.