Título: Sindicato de deputados
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

¿Estamos bastante tranqüilos, pois percebemos em todos os contatos que o clima não favorece uma candidatura alternativa que colocasse em risco a estabilidade da Câmara.¿ Com essas palavras, no início de janeiro, o petista Arlindo Chinaglia, candidato à presidência da Câmara, evidenciava aquilo que o une ao adversário Aldo Rebelo, do PCdoB: a ¿estabilidade da Câmara¿.

O que é a ¿estabilidade da Câmara¿ senão a troca, pela maioria dos parlamentares, das prerrogativas do Parlamento por cargos, privilégios pessoais e, no limite, dinheiro vivo oferecidos pelo Executivo? Chinaglia e Rebelo representam a continuidade da legislatura que se encerra na que se inaugura. Sob Rebelo, a Câmara absolveu quase todos os ¿mensaleiros¿ e ¿sanguessugas¿. Hoje, Chinaglia tem o apoio da maior parte desse submundo de larápios que envenena a democracia brasileira. A ¿dança da impunidade¿ da deputada Angela Guadagnin serviria aos dois como vinheta de campanha. A disputa sem quartel que fingem travar entre si é, na verdade, uma ofensiva conjunta que movem contra o Parlamento.

Quando Severino Cavalcanti, o sumo sacerdote do ¿baixo clero¿, foi guindado à presidência da Câmara, seu programa era aumentar os subsídios dos deputados. Chinaglia e Rebelo são severinos, como atestaram ao desfraldarem a bandeira da elevação aos céus do valor dos subsídios. O projeto não foi abandonado, figurando como promessa sagrada das duas candidaturas. Os dois se apresentam como postulantes ao cargo de presidente de um sindicato de deputados. À moda severina, enxergam os parlamentares como uma corporação: uma comunidade de ofício assentada sobre interesses compartilhados e separada por um muro de privilégios dos cidadãos que os elegeram.

Severino servia a um único senhor, o sindicato dos deputados, e sua lealdade absoluta à causa da corporação podia, às vezes, colocá-lo em rota de colisão com o Executivo. Chinaglia e Rebelo são mais que severinos: eles servem simultaneamente a dois senhores, conciliando a causa da corporação aos interesses de um Executivo que almeja anular o Parlamento. Os cavaleiros andantes da ¿estabilidade¿ refletem a degeneração das instituições da República, que é acentuada pelo salvacionismo lulista.

No presidencialismo americano, o equilíbrio de Poderes é fruto do conflito permanente entre eles. No Brasil, a Constituição de 1988 optou pelo caminho da ¿harmonia¿ entre os Poderes, o que significa a subordinação do Parlamento a um Executivo que tudo pode, mas deve oferecer sinecuras aos parlamentares a fim de assegurar uma maioria estável no Congresso. Sob esse sistema, o Parlamento só se eleva à condição de Poder independente durante crises institucionais, debaixo do clamor das ruas, como quando encetou o impeachment de Fernando Collor.

Nos dois mandatos de FHC, a degradação do Parlamento foi disfarçada pela formação de uma maioria parlamentar alicerçada no acordo programático PSDB-PFL. Sob Lula, na ausência de uma plataforma política comum, a base governista assenta-se apenas no loteamento de cargos públicos e na corrupção pura e dura. Essa circunstância não incomoda o presidente, que se acredita o salvador da Pátria e despreza, por princípio, a instituição parlamentar. Nos tempos de bravatas oposicionistas, Lula acusou a existência dos célebres ¿300 picaretas¿ do Congresso; no poder, seu programa é governar com o apoio de uma maioria parlamentar de picaretas.

A opção inicial de Lula era reconduzir Rebelo ao cargo de chefe dos picaretas. A máquina petista, que se agarra com a fúria dos famélicos às fontes de cargos e influência, reagiu e impôs o nome de Chinaglia. José Dirceu e Marta Suplicy conduziram a sabotagem da candidatura de Rebelo, reunindo em torno de Chinaglia tudo o que há de pior na Câmara. O presidente rendeu-se aos fatos pois, no fim das contas, tem razão em acreditar que o petista é igualmente qualificado para chefiar os picaretas.

A força do lulismo é diretamente proporcional ao grau de degeneração do Congresso, mas Lula não seria capaz, sem o auxílio das oposições, de produzir uma identificação tão completa da imagem do Parlamento com a de uma alcatéia engajada no assalto à coisa pública. A covardia das oposições, evidenciada tempos atrás na tática de vetar o imperativo do impeachment para sangrar aos poucos o presidente, manifesta-se uma vez mais na disputa pela Câmara e ameaça esvaziar de sentido a candidatura alternativa do tucano Gustavo Fruet.

Essa candidatura nasceu de uma articulação suprapartidária, liderada pelos deputados Fernando Gabeira e Raul Jungmann, que se insurgia contra a degradação do Parlamento. Os insurgentes flertaram com a idéia de lançar um anticandidato, dirigindo-se diretamente à sociedade com um programa de reforma da Câmara, limitação do poder presidencial de governar por medidas provisórias e restauração do equilíbrio de Poderes. Mas acabaram pendurando a candidatura no galho frágil de um PSDB sem espinha dorsal.

Sob o tacão dos interesses paroquiais de José Serra e Aécio Neves, o PSDB tomou a desastrosa decisão inicial de apoiar Chinaglia. Com o lançamento de Fruet, os tucanos aderiram à candidatura alternativa, mas mal escondem que pretendem usá-la apenas como trampolim para forçar um segundo turno entre Rebelo e Chinaglia. Nesse cenário se uniriam a Rebelo, que conta com o apoio de um PFL incapaz de estabelecer distinções entre princípios e chicana.

De anticandidato e porta-voz da sociedade enojada pelo odor que emana da Praça dos Três Poderes, Fruet pode-se converter apenas num cavalo de Tróia da guerra de mentirinha entre o candidato lulo-petista e o lulo-pefelista. Nessa hipótese, Gabeira e os seus terão perdido uma oportunidade histórica de dialogar com o País sobre a crise que devora o equilíbrio de Poderes na República. A vitória será do Planalto. A derrota, da democracia.