Título: Na política externa, outro descompasso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 25/01/2007, Notas e Informações, p. A3

O editorial de ontem deste jornal, O descompasso entre o discurso e a carpintaria, tratou principalmente do contraste entre a ênfase com que o presidente Lula defendeu reiteradas vezes a integridade dos princípios da ortodoxia macroeconômica, no discurso de lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), e a extrema vulnerabilidade a que o PAC, em razão da sua própria estrutura, expõe a política de responsabilidade fiscal até agora seguida pelo seu governo. Nele, diga o que disser o presidente, o equilíbrio fiscal ficou completamente desprotegido do possível, ou até provável, assédio dos setores do próprio governo, para não falar das alas do PT e da base parlamentar governista que jamais esconderam a sua oposição ao que chamam pejorativamente paloccismo. Decerto eles tenderão a ver no programa a tão esperada oportunidade para ¿entrar na Rua Augusta a 120 quilômetros por hora¿ - embora Lula tenha recorrido a essa metáfora apenas para ressaltar a sua profissão de fé na manutenção dos ¿limites ideais de segurança¿.

Mas esse não é o único descompasso entre as suas palavras e os fatos. Já destacamos que o presidente fez mais, em seu discurso, do que reafirmar compromissos com os fundamentos de uma política econômica responsável. Ele aproveitou o momento verdadeiramente inaugural do segundo mandato para refutar, sem ambigüidade alguma, a asnice de que ¿liberdade sem comida, não é verdade, é mentira¿, como recitava, no começo dos anos 1960, a esquerda aloprada brasileira. Hoje isso é a bandeira que Hugo Chávez, para tentar encobrir o seu projeto ditatorial, colocou nas mãos dos seus seguidores nessa desafortunada região do mundo, não menos aloprados que os radicais brasileiros que os precederam. ¿Pouco me interessaria um aumento expressivo do PIB se isso implicasse, o mínimo que fosse, redução das liberdades democráticas¿, disparou Lula, numa das mais contundentes e citadas passagens de sua fala.

Como se diz no boxe, foi um direto na ponta do queixo do caudilho venezuelano, que a partir de agora sabe perfeitamente em que lugar do espectro ideológico - e com que firmeza - se situa o presidente brasileiro que vinha lhe permitindo que dele fizesse troça ou mesmo que o repreendesse em público. A mensagem deve ter ecoado também na Bolívia de Evo Morales, a quem Lula permitiu liberdades ainda piores, como a ocupação militar de instalações da Petrobrás, a pretexto de que os fracos têm direitos que aos fortes não assistem. Provavelmente para dar um puxão de orelhas nos críticos do medíocre crescimento brasileiro que invocam, em contrapartida, os índices estratosféricos de expansão da economia chinesa, sob o regime de partido único, ausência de liberdades civis e de direitos sociais comezinhos no Ocidente, a começar pelos trabalhistas, Lula não deixou por menos. ¿Aqui¿, sublinhou, ¿não se cresce sacrificando a democracia, não se fortalece a economia enfraquecendo o social.¿

Pois bem. Que contraste entre esses enunciados e a prática da política externa brasileira - do trio Celso Amorim, Samuel Pinheiro Guimarães e Marco Aurélio Garcia -, cuja cumplicidade com o autoritarismo alheio, nas relações bilaterais e nos foros multilaterais, faz crer ao estrangeiro menos familiarizado com este canto do globo que o lulismo é força auxiliar do chavismo. Imagine-se o que aconteceria se as alocuções e votos dos representantes diplomáticos nacionais e os textos dos documentos mais importantes da Chancelaria expressassem, com idêntica clareza, os valores doutrinários que o discurso de Lula soube defender tão bem. É fácil imaginar o efeito benéfico que esse ato de coragem - e de coerência - acarretaria não apenas para os projetos pessoais de liderança do chefe de Estado brasileiro no cenário externo, mas para o próprio status do País na ordem internacional, com desdobramentos até mesmo na esfera das relações econômicas e comerciais. Não se pode esquecer que a segurança jurídica e política é critério de primeira grandeza nas decisões dos investidores estrangeiros.

A posição da China como pólo de atração de capitais e no comércio mundial se deve principalmente à ¿segurança jurídica¿ que o seu regime proporciona ao capital internacional. E a China é pressionada cada vez mais a jogar pelas regras ocidentais. Já o Brasil somente precisaria mostrar que é o mais democrático dos Brics - o que é pura verdade.