Título: As areias movediças do Iraque
Autor: Lampreia, Luiz Felipe
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/01/2007, Espaço Aberto, p. A2

Em solene pronunciamento à nação há duas semanas, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, anunciou, praticamente contra tudo e contra todos, que vai enviar mais 21.500 soldados para, pelo menos, garantir a segurança em Bagdá e na Província de Anbar. Haverá alguma chance de reverter uma situação desesperada?

A Guerra do Iraque foi um erro maior do que a do Vietnã. O conflito na Indochina tinha uma origem anticolonialista, mas havia evoluído no início da década de 1960 para se tornar uma das várias batalhas vicárias que a União Soviética e os Estados Unidos travaram durante a guerra fria para preservar ou conquistar ganhos estratégicos. Por meio da ajuda militar e econômica, o bloco comunista fortaleceu o combate tenaz e empedernido do Vietnã do Norte. Na lógica então reinante, os Estados Unidos apoiavam o Vietnã do Sul diretamente e chegaram a ter meio milhão de homens lutando na Península. É óbvio que foi um erro subestimar Ho Chi Minh e o general Giap. A retirada desesperada de Saigon foi um fim inglório e humilhante que mergulhou a América, até então invicta, numa profunda crise de prostração e dúvida. Mas a posição estratégica dos Estados Unidos não foi profundamente abalada. A teoria dos dominós revelou-se falsa, pois a Tailândia, a Malásia, as Filipinas e todos os seus demais aliados na região não mudaram de regime nem abandonaram o campo dos Estados Unidos.

Já no Iraque, o quadro em 2003 era completamente diferente. Saddam Hussein continuava a ser um ditador sanguinário, mas não representava ameaça alguma. Não tinha armas nucleares , como Bush e Tony Blair, primeiro-ministro britânico, alegavam, o que, aliás, a missão de inspeção da ONU chefiada por Hans Blix já havia demonstrado. Não alimentava relação alguma com os fundamentalistas e terroristas islâmicos. E, de contrapeso, ainda era um inimigo que continha o poderio do Irã , hoje o maior risco da região. Portanto, por uma fria avaliação estratégica fundada em fatos que os dois líderes não podiam ignorar, dada a imensa massa de informações que recebem, não havia razão para invadir o Iraque. E, mesmo assim, a guerra foi deslanchada, violentando o Conselho de Segurança da ONU, criando uma grave e inédita fissura na aliança ocidental e, sobretudo, ignorando o fato elementar de que à invasão teria de se seguir a ocupação, com seu cortejo de horrores. O resto da história conhecemos todos: não foi possível unificar um país tão heterogêneo, muito menos estabelecer um regime democrático, os invasores não foram recebidos com flores, o terrorismo encontrou campo fértil para o recrutamento de combatentes e homens-bomba, o Iraque assiste a uma carnificina diária e as tropas americanas e iraquianas estão cada vez acuadas e impotentes.

Hoje é claro, para quem quer ver, que os Estados Unidos perderam esta guerra, que a maior potência militar que jamais houve vai sofrendo no Iraque a sua segunda derrota estratégica em 30 anos e, desta vez, para uma força de irregulares. Não há nenhuma chance de vitória, a não ser, talvez, na hipótese absurda e inimaginável de uma grande escalada militar e de um repressão brutal, de tipo nazista, da insurgência iraquiana. A escolha atual é, portanto, entre cenários menos ruins ou desastrosos. Todos os grandiloqüentes objetivos iniciais da invasão - desmantelar o programa nuclear de Saddam, transformar o Iraque num país democrático e pluralista, derrotar ameaça global do terrorismo - falharam por completo. Restou apenas o fim do tirano e de sua família. Bush tem hoje uma aprovação pífia do povo americano e já perdeu a maioria nas duas Casas do Congresso. O Iraque é hoje o epicentro do terrorismo antiocidental e a luta contra as forças americanas, um terreno excepcional para aperfeiçoar técnicas de combate de seus opositores. A guerra civil entre os segmentos étnicos e religiosos do país parece inevitável. Em suma, um desastre completo. Só resta a Bush tentar ganhar tempo, reduzindo as perdas, para dentro de dois anos passar a fatura ao seu sucessor, como Lyndon Johnson fez no caso do Vietnã.

Há uma imensa relutância em Washington - e no Pentágono em particular - em admitir que os milhares de mortos e as centenas de bilhões de dólares foram pura perda. Pode-se até compreender que seja humilhante para uma superpotência encarar esta terrível realidade. Mas o caminho de aumentar a parada, agravando uma situação que o insuspeito general Colin Powell chamou de muito penalizadora para o Exército americano, chega às raias do absurdo. O novo comandante das forças americanas no Iraque, general David Patraeus, terá imensa dificuldade, mesmo com 21.500 reforços, em alterar o quadro dramático que está desenhado. Está claro que o próprio governo do Iraque reluta em desempenhar o papel crucial que o novo plano americano lhe atribui. Só isso bastaria para inviabilizá-lo. Melhor teria feito o presidente Bush em aceitar as sóbrias conclusões do grupo de cidadãos eminentes, liderados pelo experiente James Baker - que, aliás, foi secretário de Estado de seu pai -, que aconselharam uma retirada organizada. Se não fosse esta a alternativa específica, pelo menos deveria ter sido buscado um outro caminho que tirasse os Estados Unidos das areais movediças do Iraque, e não que tornasse ainda mais difícil o enorme problema. Assim, seria possível evitar o aprofundamento do atoleiro e de uma espiral de violência que possa levar a situações ainda mais graves do que a atual, extravasando as fronteiras do próprio Iraque.