Título: Os desafios do poder multipolar
Autor: Ash, Timothy Garton
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2007, Internacional, p. A13

Se você quiser ver o mundo como um todo, a melhor vista é a partir da Lua. O segundo melhor posto de observação é a partir de Davos, na Suíça. A reunião anual do Fórum Econômico Mundial oferece um retrato completo e exclusivo dos problemas e oportunidades do mundo. Uma das razões para isso é simples. Em primeiro lugar, a globalização é um fenômeno econômico. Está mais avançada nas transações das grandes empresas. Ninguém, com a possível exceção do secretário-geral da ONU, tem uma perspectiva mais global do que elas. Todos os outros tipos de globalização - cultural, jurídica, política, moral - estão a reboque da economia. Mas a ambição extraordinária do fundador do fórum, Klaus Schwab, é colocá-los novamente em sincronia. 'Comprometido com a melhoria da situação do mundo', é o que se lê em letreiros iluminados em torno do resort suíço.

Todos os anos, a câmera no topo da montanha é apontada para um direção ligeiramente diferente. Este ano, sua lente está focada na 'equação de deslocamento de poder'. Com um senso de timing perfeito, a abertura do fórum, na semana passada, coincidiu com o discurso sobre o Estado da União no qual o homem mais poderoso do mundo, o presidente George W. Bush, foi obrigado a se mostrar mais humilde. Lembram da arrogância de seis anos atrás? Depois do mundo bipolar da Guerra Fria, disseram-nos que agora vivíamos num mundo unipolar. Os EUA eram a única superpotência. O país tinha as mais poderosas Forças Armadas da história da humanidade. Criaria sua própria realidade. Podia dar-se ao luxo de ser unilateralista. Depois do Iraque, adeus a tudo aquilo. Isso não diz respeito apenas ao fracasso da política externa americana particularmente arrogante. Diz respeito também a profundas mudanças estruturais, que a câmera de Davos está tentando mapear.

Meu resumo da equação de deslocamento de poder é o seguinte: o poder não é mais o que era, nem está mais onde estava. (Isto é, concentrado na Ala Oeste da Casa Branca.) Está mais difuso tanto vertical quanto horizontalmente. Verticalmente, no sentido de que relativamente menos poder reside nos governos dos Estados. Horizontalmente, no sentido de que o poder está mais amplamente distribuído entre uma série de Estados poderosos. Cada vez mais, o mapa do poder tem, ao mesmo tempo, múltiplos pólos e camadas.

O deslocamento horizontal, na direção de uma nova multipolaridade, é o mais óbvio. Naturalmente que, durante a maior parte da história, o mundo tem sido multipolar. Mas os pólos globais - digamos, o Império Mongol, a Dinastia Ming e o Império Otomano do século 16 - interagiam apenas pelas bordas. Agora toda grande potência interage com todas as outras grandes potências numa geopolítica multilateral e globalizada. Este mundo globalizado é produto da supremacia do Ocidente durante 500 anos, do que o historiador Theodor von Laue chamou de 'a revolução mundial da ocidentalização'. Mas agora essa supremacia está chegando ao fim. O que estamos vendo é o renascimento da Ásia. China e Índia estão jogando o jogo econômico segundo as regras em grande parte inventadas pelo Ocidente, mas estão derrotando o Ocidente em seu próprio jogo. E o crescente poder econômico delas está começando a se traduzir em poder político e militar.

Ao mesmo tempo, os emergentes gigantes econômicos da Ásia estão competindo com as pródigas economias de consumo da América do Norte e da Europa pela fontes finitas de energia de hidrocarbonetos e matérias-primas. Isso fortalece uma outra categoria de potência, que poderíamos chamar de potências exploratórias. O exemplo clássico é a Rússia. Há 80 anos, a Rússia soviética era forte por causa do dinamismo revolucionário do comunismo, incluindo o poder de atração da sua ideologia. Há 40 anos, a Rússia soviética era forte por causa do poderio do Exército Vermelho. Hoje, a Rússia de Putin é forte por causa do gás e do petróleo. Assim como são fortes Arábia Saudita, Irã e outras potências exploratórias, cujos recursos estão sendo disputados. A menos que, e até que, as principais economias desenvolvidas do mundo reduzam drasticamente sua dependência dessas fontes de energia - e, no discurso sobre o Estado da União, Bush prometeu o atrasadíssimo começo nessa direção -, esses Estados continuarão a ter um poder substancial, se não unidimensional. A interação entre essas duas grandes tendências - o renascimento asiático e a corrida energética - dá forma a essa nova multipolaridade.

Também importante é o deslocamento vertical, do Estado para agentes não estatais, muitas vezes habilitados por novas tecnologias. As redes internacionais de terroristas são mais um exemplo óbvio, usando novas tecnologias tanto de destruição como de comunicação. Mas há muitos outros. ONGs internacionais como a Oxfam, Human Rights Watch, Transparência Internacional e a rede Open Society de George Soros têm o poder de mudar agendas. As grandes corporações representadas em Davos são mais poderosas que os pequenos Estados.

Portanto, a nova equação de poder é um diferencial complexo. Isso quer dizer, também, que o mundo está mais difícil que nunca de ser 'administrado' da forma divisada pelos arquitetos da ordem mundial pós-1945. As instituições internacionais existentes não mais refletem as complexas realidades de hoje. Este mundo clama por novas estruturas na governança global, mas a própria difusão do poder em múltiplos pólos e camadas torna tudo mais difícil de ser realizado.

Na economia, há um mecanismo para lidar com a complexidade mundial - os mercados regulamentados. É claro que eles fazem o serviço de forma inadequada e, freqüentemente, injusta, mas por enquanto ainda fazem sua tarefa. Não há um mecanismo equivalente para lidar com a nova complexidade da política mundial. Dizer simplesmente 'reformulem a ONU' não nos levará muito longe. Eis o próximo grande desafio, revelado pela câmera instalada no topo da montanha de Davos.