Título: Medo de perder a casa para 'gusanos'
Autor: Depalma, Anthony e
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2007, Internacional, p. A15

Quase nunca aparecem estrangeiros nas ruas castigadas da velha cidade de Guanabacoa, perto da Baía de Havana. Mas recentemente alguém bateu à porta de Marielena e Francisco, um casal da classe trabalhadora. Diante de sua casa amarela e maltratada, estava um americano. O forasteiro explicou que sua mulher havia morado naquela casa de quatro dormitórios quando criança. Em 1962, quase quatro anos depois de Fidel Castro ter tomado o poder, ela e a família fugiram para Nova York. Agora ela queria fotos para mostrar aos filhos como brincava no pátio e cantava velhas canções espanholas enquanto crescia em outra época, outro mundo.

Marielena deu as boas-vindas ao estrangeiro, mas Francisco (que teve medo de revelar o sobrenome) ficou em pé com os braços cruzados sobre o peito nu. ¿Então você veio dos EUA até aqui para tirar fotos¿, disse ele, desconfiado. ¿Você vai reivindicar esta casa?¿ O estrangeiro em Guanabacoa não pretendia reivindicar nem a casa, nem qualquer outra coisa. Sei disso porque fui eu que bati àquela porta, durante uma visita a Cuba no ano passado. Minha mulher, Miriam, morou ali até os 10 anos. Quando viu as fotos que eu trouxe, ela foi tomada pela emoção. Embora desbotados e lascados, os azulejos verdes e vermelhos no chão ainda estavam lá, 44 anos depois, assim como a tinta cor-de-rosa nas paredes.

Nada havia mudado e, é claro, tudo havia mudado desde o triunfo da revolução. Agora, enquanto esperam a morte do único líder que a maioria deles já conheceu, os cubanos são forçados a reconsiderar o significado da revolução. Muitos na ilha vêem-se entre dois temores - o de hoje e o de amanhã. Onde encontrarão dinheiro, energia e iniciativa para enfrentar, com seus filhos, mais um dia? E, quando Fidel morrer, os cubano-americanos da Flórida e New Jersey, cerca de 1,5 milhão, vão voltar para recuperar o que lhes pertencia? Fidel, que há décadas confiscou propriedades privadas em toda a ilha, explorou esses temores para promover um sentimento de identidade nacional. E o medo só aumenta durante sua longa enfermidade.

Com razão. Os EUA têm uma lista de 5.911 pedidos de compensação de companhias e cidadãos dos EUA que datam da revolução. Contando os juros, eles valem hoje mais de US$ 6 bilhões. E advogados da Flórida e da região de Nova York preparam-se para uma grande batalha.

Para os cubanos que ficaram, os que saíram são ¿gusanos¿, vermes que rastejaram para fora da pátria. O governo entregou as casas abandonadas a outros cubanos e, depois de tantos anos, os atuais residentes se consideram seus proprietários, embora não tenham escritura - tecnicamente, tudo no país socialista pertence ao Estado.

Mas a grande maioria dos exilados tampouco possui documentos. E, ao contrário dos cidadãos americanos de meio século atrás, cujas reivindicações foram registradas por Washington, os cubanos que perderam propriedades não contavam com nenhum mecanismo em seu país para registrar suas perdas. Depois de tanto tempo, contudo, muitos ¿gusanos¿ concordam que não têm mais direito legítimo às casas e pequenas propriedades que deixaram para trás. Várias pesquisas entre cubano-americanos feitas recentemente no sul da Flórida e no norte de New Jersey mostram a diminuição da porcentagem da diáspora que ainda sonha em reclamar casas. A tendência é mais evidente na geração mais jovem, cujos membros nunca viveram em Cuba.

De qualquer modo, alguns exilados conservaram escrituras e as tiraram do cofre quando Fidel adoeceu. Alguns tentarão recuperar antigas residências, mas a maioria quer fábricas, usinas e outras propriedades comerciais. ¿Os cubanos não vão brigar pelas últimas casas em ruínas¿, disse Nicolás Gutiérrez Jr., advogado cubano-americano de Miami, de 42 anos, que representa vários reclamantes comerciais e reivindica pessoalmente 2 usinas de açúcar, 15 fazendas de gado e outras propriedades. ¿Entre as centenas de pessoas que represento e as milhares com quem converso, nunca vi alguém que pretendesse voltar lá e despejar moradores. Isto seria imoral.¿ Mesmo assim, o medo de pessoas como Marielena e Francisco tem importância, pois foi plantado pelo regime e nutrido por uma imprensa controlada que divulga regularmente advertências sobre os gusanos ignóbeis e o que eles podem tentar fazer numa crise. Esta densa nuvem de incerteza paira sobre Cuba desde julho, quando Fidel, de 80 anos, transferiu o poder ao irmão Raúl, de 75. Para a maioria dos cubanos, o medo do futuro pouco tem a ver com o eventual substituto de Fidel. O que os consome é a contradição entre o desejo e o medo da mudança.

Todos, exceto as famílias militares mais teimosas e os funcionários governamentais que têm regalias, odeiam o atual sistema econômico. Eles estão fartos dos carnês de racionamento e restrições de tempos de guerra - um pão por dia e, a cada mês, oito ovos, alguns quilos de frango e 200 g de ¿soja texturizada triturada¿, entre outros itens. Mas não conseguem imaginar a vida sem tais garantias subsidiadas. Eles também se ressentem de um sistema monetário duplo que torna disponíveis muitos bens de consumo para os turistas, mas os deixa fora do alcance dos cidadãos. E o próprio capitalismo parece brutal e assustadoramente desigual, um sistema que os cubanos só vislumbrar em hotéis onde não podem entrar e restaurantes que só os deixam passar acompanhados por um estrangeiro.

Ainda assim, continua existindo uma corrente subjacente de orgulho da capacidade de Fidel de enfrentar tantos presidentes americanos por tanto tempo, além de um ressentimento enraizado em relação aos EUA e seu embargo. Assim, quando Fidel morrer, provavelmente haverá uma grande demonstração de luto em Cuba. Mas o dia seguinte trará o ansiado e temido futuro - o espectro de um novo encontro com o mundo exterior que desafiará os atuais líderes de Cuba em seu esforço para garantir que a revolução de Fidel sobreviva a ele.