Título: Sinais autoritários no país de Chávez
Autor: Leite, Paulo Moreira
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2007, Internacional, p. A16

É fácil enxergar nuvens autoritárias no céu político de Caracas. A ação do presidente Hugo Chávez sugere um esforço para aproveitar a chuva de ouro dos preços do petróleo para construir uma espécie de ditadura popular, onde o governo oferece um pacote de bem-estar em troca de poderes concentrados.

Na Assembléia Nacional, o governo tem todos os votos disponíveis para reformar a Constituição à sua imagem e semelhança. Numa estética que lembra a Cuba de Fidel Castro, a palavra ¿revolução¿ enfeita absolutamente todos os discursos e documentos oficiais, mas na prática é um processo de cima para baixo, sem povo na rua - até os Conselhos Comunais, que Chávez define como uma versão local dos sovietes da Rússia de 1917, foram formados de acordo com instruções saídas no diário oficial. Insatisfeito com o tratamento dos meios de comunicação, Chávez decidiu usar uma brecha legal para extinguir a licença de funcionamento da RCTV, emissora que funciona há 53 anos e é a mais antiga do país.

O Fisco atua sobre empresários e cidadãos comuns como um serviço militarizado. As punições são freqüentes e produzidas com espalhafato. Mesmo quem compra um jornal na banca de revista é obrigado a levar uma nota fiscal com endereço, telefone e número de carteira de identidade. Entre líderes sindicais, cresce o receio diante das pressões do governo para cooptar dirigentes e criar entidades pelegas. ¿Vamos deixar claro: nós defendemos a revolução e seu aprofundamento. Mas a autonomia sindical tornou-se uma questão básica para nós¿, afirma Orlando Chirino, uma das mais conhecidas lideranças sindicais do país.

Para o historiador Manuel Caballero, uma parcela do eleitorado que reelegeu Hugo Chávez com 63% dos votos, em dezembro, ¿queria uma ditadura¿. Para Carlos Bravo, porteiro de um edifício nas cercanias da capital venezuelana, ¿vivemos numa ditadura especial. Os ricos pagam impostos. Os pobres podem ir ao médico, o salário subiu. Minha pensão de aposentado, que sempre atrasou, agora é depositada em dia. Essa ditadura me encanta.¿

O apego da maioria da população da Venezuela à democracia é claro, informam as pesquisas de opinião. Colocados diante da possibilidade de assistir à instalação de uma ditadura semelhante à de Fidel Castro, 80% rejeitam a idéia. Essa postura resoluta tem sido a principal âncora interna contra aventuras autoritárias. Tanto é assim que, embora tenha planos assumidos de permanecer em palácio até 2021, Chávez mantém o país sob um regime que, tecnicamente, é uma democracia. As tentações autoritárias, contudo, não são exclusividade do governo atual. A mesma oposição que define Chávez como ditador já promoveu dois golpes de Estado fracassados para tentar afastá-lo do poder.

¿O encantamento da população tem base na distribuição de benefícios materiais pagos pelo petróleo¿, avalia o prefeito Leopoldo López, do Chacao, município da Grande Caracas, de oposição. ¿Quando o dinheiro fácil acabar, Chávez terá de enfrentar o descontentamento e vai reprimir a população.¿

Os encantos do petróleo são um fenômeno conhecido na Venezuela. Hoje, os shopping centers vivem lotados. As filas de compra de automóvel podem durar oito meses e mesmo em janeiro as lojas ficam cheias. Nos anos 40 do século passado, a bonança venezuelana já era comparada à ¿Califórnia nos dias da `febre do ouro¿. Gastar até esvaziar os bolsos tornou-se uma espécie de mandamento nacional¿, escreveu o ex-presidente Rómulo Betancourt. ¿O venezuelano tornou-se sinônimo de gastador.¿

Quando o petróleo empurra perto de 70% do PIB, representa mais de 90% das exportações e paga todas as contas do governo, não se forma uma sociedade organizada naqueles moldes clássicos do capitalismo, mesmo em sua versão dependente.

Entre 1900 e 1977, a renda per capita da Venezuela foi a que mais cresceu em toda América do Sul - única e exclusivamente por causa do petróleo. Os venezuelanos conseguiram alfabetizar a população mais cedo do que a maioria dos vizinhos. Criaram hábitos tão refinados que hoje em dia 200 mil pessoas dedicam a maior parte do tempo a aprender música. A criminalidade é um pesadelo violento, mas um estudo das Nações Unidas, no primeiro semestre de 2006, apontava São Paulo como uma cidade menos segura do que Caracas.

A maioria dos economistas estima que o aparato produtivo venezuelano é tão precário que só consegue absorver 4% do dinheiro do petróleo, o que gera uma economia parasitária, com surtos incontroláveis de consumo, que pressionam por importações que impedem a formação de uma indústria local e transformam a iniciativa privada num clube de amigos. Hoje, importa-se até os biscoitos à venda no Mercal, os supermercados populares subsidiados pelo governo. O açúcar desaparece com freqüência. A inflação cresce com facilidade. O mundo do trabalho tem um peso relativo e isso tem pouco a ver com o debate sobre a economia pós-moderna. É que a riqueza vem da exploração da terra. Com o crescimento dos últimos três anos, o desemprego diminuiu de 12% para 10%.

Chávez só mostrou a que veio quando os saltos do mercado permitiram lançar um pacote de benefícios que transforma o Bolsa-Família do governo Lula em esmola. Elevou em 20% a renda no campo ao equiparar os salários da zona rural com os das regiões urbanas. Despejou pequenas fortunas na conta dos funcionários públicos ao quitar, de uma só vez, o passivo trabalhista acumulado durante muitos anos em pleitos na Justiça.

O governo garante crédito universal para todo cidadão interessado na casa própria. O crédito para a compra de automóveis zero-quilômetro está garantido até para estrangeiros que residem no país. Os aluguéis foram congelados há três anos - só em 2006, a inflação foi de 17%. Nos bairros pobres, mães carentes recebem um salário mínimo mensal - superior a R$ 500 - a título de ajuda. Num bairro popular de Caracas, onde vivem cerca de 5 mil adultos, 400 mães recebem este benefício.

Nesses lugares, o governo ainda mantém casas de alimentação que fornecem comida de graça para quem não pode se sustentar. É muito melhor do que cesta básica porque não dá trabalho. São três refeições ao dia, prontas para servir, em quentinhas de alumínio. Ali, o governo não banca apenas a pavimentação de ruas e a construção de escadarias nos morros que marcam a paisagem de Caracas. Também banca reformas nas residências de cada família. Troca telhado, acaba com infiltrações e é capaz de construir uma casa nova em folha caso se chegue à conclusão de que o imóvel anterior tornou-se imprestável. ¿O sistema está pronto com suas leis e regras,¿ afirma a líder comunitária Julia Ramírez. ¿Só não funciona melhor por causa de nossa pressa, nossa anarquia.¿

Com esse crescimento de 10% ao ano desde 2003, a Venezuela poderia transformar-se numa potência sul-americana, caso a janela do mercado internacional permitisse. A maioria dos observadores locais duvida disso em função do viés político do governo. Chávez produz uma diplomacia que subsidia países que se alimentam do petróleo bolivariano, como Cuba, Equador, Bolívia, Nicarágua. Seria uma futilidade ideológica se não incluísse hostilidades permanentes em direção ao Primeiro Mundo, onde se encontram capitais e cérebros indispensáveis para um salto de envergadura. O resultado é que todo mundo quer ganhar dinheiro na bolha de consumo da Venezuela de Chávez, mas a taxa de investimentos segue uma das mais baixas da região, ainda que o risco-país seja de 183, o menor de sua história, e que o petróleo, em baixa há seis meses, ainda se encontre num patamar bastante confortável para as contas do governo.

Num esforço para obrigar as montadoras a encontrar parceiros internos para produzir automóveis num mercado superaquecido, o governo baixou um decreto com restrições às importações. A idéia é favorecer a produção local, mas a proposta enfrenta dificuldades estruturais. ¿O problema é que aqui não há empresários preparados nem engenheiros formados¿, afirma um executivo brasileiro, que há três anos reside na região de Caracas. ¿Quando se compara com o Brasil, a defasagem é de pelo menos 20 anos.¿

Uma das principais ações de Chávez para estimular o emprego foi a criação de cooperativas. Eram 877 antes da posse, tornaram-se 100 mil em 2005. Mais de dois terços estão voltadas para a área de serviços - num sinal das dificuldades para encontrar um caminho produtivo. O governo também pretende subsidiar sistemas de co-gestão em 700 fábricas, que foram à falência por razões diversas.

Num texto sobre a petro-ditadura de Marcos Pérez Jiménez (de 1952 a 1958), que marcou Caracas com parques e avenidas nos anos 50, o economista Arturo Uslar Pietri associou a riqueza do petróleo ao autoritarismo. Escreveu que a Venezuela possui ¿o capitalismo de Estado mais extenso e poderoso do lado de cá da Cortina de Ferro. Esse capitalismo de Estado tem conseqüências graves. Se continuar crescendo ilimitadamente, a Venezuela vai se tornar um país não mais de dependentes do petróleo, mas de dependentes do Estado, e esse capitalismo monstruoso do Estado chegará fatalmente a converter-se em uma terrível máquina de tirania.¿

Num ambiente com pressões em tantas direções, a Assembléia Nacional é um ambiente curioso. Quando a presidente Cilia Flores encaminhou a votação da Lei Habilitante destinada a assegurar poderes especiais a Chávez, em primeira discussão, não foi preciso nem verificar o quórum nem contar os braços erguidos. Muitos deputados tinham ido embora para seus Estados, um líder importante não voltara do almoço. Já se sabia que o governo iria vencer - por unanimidade.

Numa sessão recente na qual se comemorou o Dia do Professor, uma dezena de parlamentares fez discursos. ¿Nossa tarefa é forjar uma nova geração de professores, educados para o socialismo e a revolução¿, disse o deputado Giovanni Peña. ¿Para criarmos o homem novo precisamos da educação nova¿, afirmou.

Peña considera a Venezuela uma terra abençoada. ¿Essa terra pariu um lutador que participou das guerras revolucionárias do século 18 na Europa, o general Francisco Miranda¿, diz. ¿Aqui também nasceu Simón Bolívar, o Libertador de seis nações da América...¿

Beneficiada pelo boicote da oposição ao pleito parlamentar, que lhe permitiu concorrer sem adversários, a professora Gabriela Ramírez elegeu-se com o voto de bairros nobres de Caracas. Bonita, casada e mãe de três filhos, tornou-se a principal interlocutora de Chávez na classe média. ¿As melhorias nas regiões mais pobres beneficiam todo mundo, até a classe média¿, diz. Um exemplo de revolucionário? ¿Eu amo Che Guevara¿, diz.