Título: 'Este não é um governo que segue o liberalismo'
Autor: Dantas, Fernando
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/01/2007, Economia, p. B4

A política econômica brasileira começou a mudar em 27 de março de 2006, mas pouca gente levou fé. Foi naquele dia que o economista Guido Mantega assumiu a função até então conduzida por Antônio Palocci, que caiu acossado por escândalos. Pessoalmente tímido, o novo ministro passava a impressão de que teria apenas um mandato tampão e, apesar de uma retórica ligeiramente mais à esquerda, não mexeria muito no arcabouço ortodoxo da economia na era Palocci.

Alguns ainda alimentam essa ilusão, levados por episódios como o recente apoio de Mantega ao corte de apenas 0,25 ponto porcentual na Selic (taxa básica) na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom). O ministro da Fazenda, porém, tem instinto político e sabe que a mudança que está lutando para imprimir à política econômica do presidente Lula é uma queda-de-braço de longa duração, pontuada por pequenas vitórias e derrotas nas suas posições pessoais. Ele age como se já estivesse confirmado por Lula para o segundo mandato.

Diplomático, evita criticar Palocci e atribui as diferenças das duas gestões ao enfrentamento de diferentes momentos da economia. É evidente, porém, que Mantega atribui a si mesmo o papel de romper com o que percebe como excesso de ortodoxia do primeiro mandato de Lula.

Diferentemente do que alguns pensavam, a ruptura não está ocorrendo no sistema monetário e cambial, mas na definição do papel do Estado. Mantega, em sintonia com Dilma Roussef, ministra-chefe da Casa Civil, é profundamente crítico do que considera uma ideologia que teria se tornado dominante na era tucana. Nessa visão, segundo o ministro, o Estado tem um papel passivo e a idéia é de que, quanto menor a sua participação, melhor. Ele resume a sua posição dizendo que ¿este não é um governo liberal, que segue o Consenso de Washington¿. Mas ressalva que é contra reeditar o Estado desenvolvimentista dos anos 70 e 80.

A seguir, em entrevista concedida ao Estado na sexta-feira, em um pequeno restaurante de Davos, Mantega falou da concepção de Estado por trás do Programa de Aceleração Econômica (PAC).

O corte de apenas 0,25 ponto na Selic não foi um balde de água fria no crescimento?

Se você examinar o que aconteceu na política monetária, o crédito e o financiamento nestes últimos quatro anos, vai notar que está havendo uma revolução. O crédito pessoal aumentou 100% nos últimos quatro anos, com as taxas de juros caindo pela metade. Hoje, há R$ 44 bilhões em crédito consignado, tem crédito habitacional, para a agricultura, do BNDES. Se somar o crédito mercantil, já estamos chegando a 50% do PIB. Todas as taxas de juros estão caindo.

Qual é a concepção de Estado por trás do PAC?

Não existe desenvolvimento induzido pelo Estado, isto é coisa dos anos 60, 70. Agora, se o Estado não investe mais 20% do PIB, não precisa investir só 0,5%. Ele pode investir 1%, 1,5%, o que aumenta a oferta de infra-estrutura, barateia custos, agiliza operações. Então é isso que estamos fazendo com algumas das medidas do PAC e outras iniciativas do governo. O que nós queremos é que o setor privado se desenvolva, se expanda, assuma o seu papel. O setor elétrico é concessão, o setor de ferrovias é concessão, o setor rodoviário é concessão, os portos são concessões. Agora, se o Estado não der uma arrancada, o setor privado não se move na velocidade adequada.

Como o sr. define o governo Lula em relação ao liberalismo?

Este não é um governo liberal, que segue o Consenso de Washington, que acha que tudo que o Estado faz é ruim, que os desequilíbrios regionais são resolvidos espontaneamente, que a pobreza vai ser combatida automaticamente pelo crescimento do País. Este é um governo que acha que tem que fazer uma política social acoplada a uma política econômica, que as desigualdades sociais se combatem com programas específicos e a participação do Estado e as diferenças regionais são diminuídas pela ação do Estado.

E na economia?

O Estado tem que ter alguma presença em certas áreas porque o setor privado não entra. Não é porque o governo acha que tem que ser o Estado. Nós não achamos que o Estado tem que cuidar de geração de energia. Achamos que pode ser do setor privado, mas tem que ver se o setor privado tem cacife para isso. Nós vamos lançar agora a Hidrelétrica do Rio Madeira, que são duas, que são investimentos da ordem de US$ 14 bilhões, US$ 15 bilhões. Será que o setor privado consegue entrar sozinho?

O sr. poderia dar outros exemplos?

A Transnordestina é um projeto que, neste momento, não seria implantado exclusivamente pelo setor privado porque ela só vai dar lucro daqui a 5 anos, 10 anos, mas vai ajudar a desenvolver a região. O setor privado só se norteia pela lei do lucro. Se der lucro, entra, se não, não entra. Mas o Estado tem uma visão de longo prazo que o setor privado não tem, uma visão planejada. Então a gente faz uma Transnordestina, uma Norte-Sul, trechos da BR-101.

O setor privado costuma alegar que não investe por falta de um marco regulatório eficiente.

Não, muito pelo contrário. Este governo quer um marco regulatório claro para todos os setores, para deixar claro quais são as regras do jogo, quais as responsabilidades e os deveres de cada um. Somos favoráveis a um marco regulatório, sim, tanto que o implementamos, apoiamos o marco regulatório do saneamento, do setor elétrico.

Há a reclamação também de que o governo não está contendo os gastos correntes, o que leva a uma taxação excessiva dos negócios.

Eu vou te mostrar um quadro e você vai ver que há gastos correntes que são menores hoje que no último ano do governo Fernando Henrique, em 2002. Nós cuidamos muito disto. Agora, não pode confundir investimento com gasto corrente, programa social com gasto corrente. Este governo faz gasto social, sim. Põe em prática programas sociais, sim, e vai continuar fazendo.

Qual a sua visão sobre o superávit primário?

Existe uma concepção de que, quanto maior o superávit primário, melhor para as contas públicas e o crescimento. Quanto menor a participação do Estado nas atividades econômicas, melhor. Não façamos nenhum gasto, não façamos investimento. Eu não concordo com essa visão. Acho que tem que haver um superávit primário adequado para que a relação entre a dívida pública e o PIB caia e considero que o Estado tem que ser fiscalmente responsável. Mas o Estado tem que ter uma atitude ativa em certos setores, ele não pode ser totalmente passivo, sentar em cima e não fazer nada. E antes havia esta concepção. Mas não defendo a volta ao Estado desenvolvimentista dos anos 60 e 70.

Como assim?

O Estado desenvolvimentista fazia tudo, siderúrgica, hidrelétrica, era um Estado empresário. Não é isso que estamos propondo. Eu sou totalmente favorável ao sistema de concessões. Se você tem uma estrada ou fez a estrada, pode fazer a concessão e o setor privado vai manter.

Mas por que houve o cancelamento do leilão de concessões rodoviárias?

Porque tem que haver tarifas baixas, pedágio baixo, não se pode permitir lucros exorbitantes no sistema de concessões. No passado, eram tantos os riscos, tantas as dificuldades, tantos os desequilíbrios, que os investimentos exigiam uma remuneração altíssima, de 25%, 30%. Isso é totalmente anormal. Hoje o Brasil é capaz de se equiparar a países emergentes avançados porque tem estabilidade, dá garantias de longo prazo nos contratos. Pode fazer concessões colocando em primeiro lugar o interesse público.

O sr. concorda com as declarações do presidente Lula de que o déficit da Previdência deve-se, na realidade, à política social?

Não tenho a menor dúvida de que ele está certo. A Constituição de 1988 colocou na rubrica Previdência o que era na verdade assistência social. Pessoas que nunca tinham contribuído para a Previdência passaram a ganhar uma aposentadoria. Não é aposentadoria, é uma renda, é renda mínima...

Mas não é alto demais para renda mínima?

A aposentadoria rural é a mínima, é o menor possível, é um salário mínimo. Como que é alta?

A política social vinculada ao salário mínimo representa gastos superiores a R$ 100 bilhões por ano. A melhor forma de fazer política social é via Previdência?

E você acha que a melhor forma de fazer política social é deixar 7 milhões de agricultores pobres morrerem de fome? Isto foi decisão do Congresso Constituinte de 1988 e não está em discussão.