Título: Previdência - ruim mesmo sem déficit
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

O governo adotou nova forma de ver o déficit do chamado Regime Geral da Previdência Social (RGPS), administrado pelo INSS, rombo esse que no ano passado ficou em alarmantes R$ 42 bilhões. O presidente Lula disse em Davos, na Suíça, que esse rombo reflete a política social do governo e que o déficit é "do Tesouro".

Antes de prosseguir, cabe esclarecer que no governo federal o RGPS é orçamentariamente tratado em separado, dentro do chamado Orçamento da Seguridade Social. O que Lula disse é que o RGPS é deficitário, em larga medida, porque suporta despesas que deveriam estar excluídas desse orçamento. Em particular, citou gastos do INSS com benefícios recebidos por pessoas que não contribuíram para a Previdência, como aposentados do setor rural, idosos e portadores de necessidades especiais sem outra fonte de renda, cujas carências o levaram a considerar o déficit como "social".

O que disse o presidente reflete uma posição mais claramente exposta em pronunciamentos do ministro da Previdência Social, Nelson Machado. Assim, em entrevista publicada pelo portal deste jornal em 25 de janeiro, Machado defendeu nova forma de apresentação das contas do RGPS. Chamou o saldo negativo de 2006 de ¿déficit seco¿, qualificando que inclui benefícios como os citados acima. Referiu-se também às chamadas "renúncias fiscais", ou seja, o quanto custam as menores alíquotas previdenciárias do Simples (sistema de tributação especial das pequenas e microempresas), as isenções de contribuições ao INSS concedidas a entidades filantrópicas e outras regras legais que impõem renúncias desse tipo, e afirmou que não cabe ao orçamento do RGPS suportar esses custos, que assim deveriam ser descontados do seu déficit.

Nas suas linhas gerais, é correto esse caminho de tornar mais transparentes as contas do RGPS, bem como de retirar delas o custo de decisões que não cabem num regime que se diz de Previdência. Bem antes da Constituição de 1988, juntamente com outros economistas, já defendíamos dois sistemas, separando o regime tipicamente previdenciário (de benefícios devidos a seus contribuintes) de outro voltado para gastos de assistência social, sem a contrapartida de contribuições de seus beneficiários. Isso dentro da separação clássica que num país como os EUA separa a "social security", ou Previdência Social, dos programas de ¿welfare¿, ou bem-estar social.

Na Constituição, contudo, se optou por um balaio orçamentário no qual tudo foi misturado no conceito de seguridade social, não só confundindo as contas, mas também com prejuízos para os contribuintes do RGPS, que tiveram seus benefícios contidos em face do forte crescimento dos gastos tipicamente sociais. No processo, abalou-se o conceito de Previdência, diminuindo fortemente a crença dos brasileiros num sistema em que os benefícios correspondam às contribuições. Assim, grande parte da população deixa de contribuir, pois tem assegurados benefícios que independem dessa contribuição. Em síntese, há muita gente que recebe sem contribuir, e outros que não recebem em proporção do que pagaram.

A separação de contas defendida pelo governo deveria ser levada às suas últimas conseqüências com a separação dos dois sistemas, com vista a recuperar a credibilidade do previdenciário, atraindo novos contribuintes e com repercussões favoráveis para a saúde financeira desse sistema.

Assim, ressalvado o que trazem de maior transparência, as providências anunciadas pelo governo não passam de um ajuste contábil, sem outros de maior profundidade. Nas palavras do secretário do Tesouro Nacional, Tarcísio Godoy, na edição de ontem deste jornal, "é um ajuste contábil, que não afetará o caixa do Tesouro..." A matéria conclui que parte do déficit apenas mudará de endereço, com considerável redução, estimada em R$ 18 bilhões no futuro imediato, do déficit do RGPS, com esse valor passando ao outro orçamento da União.

Mexendo contabilmente aqui e ali, o governo poderá até trazer o déficit do RGPS para perto de zero. Mas há aí uma grave distorção, a insistência em alardear que um déficit menor é sintoma de que os problemas previdenciários do RGPS não são tão graves como muitos apontam.

Mas não é assim. Mesmo se o déficit previdenciário do RGPS fosse zerado por razões bem sustentadas e um ou outro truque contábil, isso não diminuiria a gravidade da situação do lado previdenciário desse regime. Mal sustentado por uma dinâmica demográfica que leva ao rápido envelhecimento da população brasileira, ele oferece benefícios que não se justificam dentro das boas práticas previdenciárias internacionais.

Em particular, permanece o regime de aposentadoria por tempo de contribuição e a ausência de um limite de idade condizente com essa dinâmica demográfica. Com as aposentadorias precoces que resultam desse sistema, ele é caro para o nível de renda médio da população e leva a contribuições de Previdência Social com alíquotas de valor muito elevado. Essas elevadas contribuições são um dos ingredientes da alta carga tributária brasileira, a mais elevada do mundo relativamente a esse nível de renda.

Com a discussão do assunto colocada pelo governo de forma essencialmente contábil, é preciso explicitar noutros termos o desafio que ele deveria realmente enfrentar nessa área, como em outras que dizem respeito às suas contas. Dadas as suas receitas de impostos e contribuições, esse desafio é o de conter as despesas de modo a permitir uma redução da carga tributária, no caso, a previdenciária, tudo como proporção do PIB.

Os procedimentos contábeis de que cogita o governo mal escondem que ele se recusa a enfrentar esse desafio, no RGPS como em outras áreas.