Título: As contas da Previdência
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/02/2007, Notas e Informações, p. A3

O governo federal anunciou que dará um novo tratamento às contas da Previdência Social, que absorverão apenas as aposentadorias e pensões dos trabalhadores do setor privado, ficando os benefícios da Loas e as aposentadorias rurais - os chamados programas sociais - diretamente debitados ao Tesouro. Com isso, o déficit do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) cairá de R$ 42 bilhões para R$ 24 bilhões. Mas essa é uma providência meramente contábil. O rombo de R$ 42 bilhões continuará existindo e precisará ser coberto com a emissão de títulos públicos.

Se a medida é neutra, do ponto de vista contábil, ela pode ter, no entanto, um salutar efeito político. Uma vez separadas as contabilidades do INSS e dos programas sociais, o Executivo e o Legislativo terão de se enquadrar nas rígidas regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, sempre que pretenderem criar ou ampliar programas e subsídios sociais.

Hoje, os gastos com todos esses programas são debitados na conta do INSS. Assim, são beneficiários do INSS tanto as pessoas que contribuíram durante a maior parte de suas vidas, como empregados com carteira assinada ou autônomos, para custear seus planos de aposentadoria, como pessoas que nada ou muito pouco contribuíram, mas são contempladas pelos programas sociais do governo federal.

Na semana passada, em Davos, o presidente Lula procurou minimizar a importância do déficit previdenciário, atribuindo-o não à conta das aposentadorias e pensões dos trabalhadores do setor privado, mas à política social do governo, como um todo. O fato é que a contabilidade única distorce diagnósticos e dificulta soluções. O déficit da Previdência, por exemplo, não é monolítico. Decompostas as contas, fica-se sabendo que as contribuições pagas pelos trabalhadores cobrem 89,8% das despesas com as aposentadorias urbanas, mas apenas 11,8% das aposentadorias rurais.

Como o governo é legalmente obrigado a custear parte da Previdência, junto com trabalhadores e empregadores, há quem conclua - como o ex-procurador-geral da Fazenda Nacional Cid Heráclito de Queiroz, em artigo recentemente publicado no Estado (20/12) - que na Previdência Social, propriamente dita, não há déficit. De fato, até o início da década de 1990, o INSS registrava superávits. A situação se inverteu a partir da promulgação da Constituição Cidadã, que criou benefícios sociais sem provisão de recursos específicos para custeio.

Com contas separadas, não serão debitados à Previdência, e sim ao Tesouro, além das aposentadorias rurais e dos benefícios da Loas, os benefícios decorrentes do Estatuto do Idoso e as renúncias fiscais - como a isenção da alíquota previdenciária patronal para entidades filantrópicas das áreas de saúde, educação e assistência social, ao custo de R$ 11,4 bilhões, em 2006.

A mudança imporá novos critérios para a discussão das políticas sociais. O rombo orçamentário continuará a existir, apenas se transferindo do INSS para o Tesouro. O governo continuará não podendo propor regras pródigas para o aumento do salário mínimo - a menos que aceite a desvinculação dos benefícios previdenciários - e terá de adotar medidas estruturais como a idade mínima para aposentadoria, sem o que não se interromperá a tendência de crescimento das despesas em ritmo muito superior ao aumento das contribuições. Nisso, nada muda.

Mas o governo não mais terá condições para criar benefícios sociais sem determinar as suas fontes de custeio. Até agora, isso era feito despreocupadamente. Bastava o governo colocar o novo benefício sob o guarda-chuva da Previdência. Como a Constituição determina que os desequilíbrios da Previdência têm de ser cobertos pelo Tesouro, a questão nem era discutida.

Com essas despesas sendo lançadas à conta do Tesouro, no entanto, tudo muda. O Executivo e o Legislativo, sempre que quiserem conferir maior generosidade às políticas sociais, terão de explicitar de onde sairá o dinheiro - se do corte de despesas já existentes ou se do aumento de impostos. Ou seja, não haverá lugar para políticas sociais fiscalmente irresponsáveis.