Título: Enforcement da LRF
Autor: Moraes Junior, Aod Cunha de Moraes
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

As imensas dificuldades financeiras que vêm marcando o início de várias gestões dos novos governos estaduais levantam duas dúvidas em torno da eficácia da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Afinal, a lei está sendo descumprida por muitos governos? Onde a lei está sendo cumprida, ela é ineficaz para preservar a responsabilidade fiscal de governos? As respostas a estas duas perguntas ajudam a compreender grande parte dos problemas que cercam os novos governantes.

Quase todos os Estados que enfrentam grandes dificuldades financeiras neste início de novas gestões, inclusive para o pagamento da folha de salários, comprometem mais de 60% de sua receita corrente líquida (RCL) - já excluídas as transferências constitucionais aos municípios - com obrigações claramente identificadas como gastos com pessoal. Todavia, estes mesmos Estados, estranhamente, não atingiram o limite legal de 60% da receita corrente líquida de acordo com critérios de apuração da LRF realizada pelos Tribunais de Contas dos respectivos Estados. Cria-se, então, um curioso paradoxo: a LRF é cumprida, mas o total efetivo de gastos com pessoal muitas vezes inviabiliza o próprio pagamento em dia dos salários. Para entender melhor este caso geral vejamos a situação particular do Rio Grande do Sul (RS), que é bastante representativa de como a aplicação da LRF não vem significando uma limitação de fato ao excesso de despesas com pessoal nos Estados.

As dificuldades financeiras do RS já se transformaram numa referência nacional. De acordo com dados centralizados pela Secretaria do Tesouro Nacional, o RS, entre as 27 unidades da Federação, apresenta o pior resultado orçamentário, o maior endividamento em relação à sua receita líquida, o maior comprometimento da RCL com pessoal e com inativos e a mais baixa taxa de investimentos. Não obstante este quadro alarmante para as finanças estaduais, a despesa com pessoal cresceu de R$ 7,5 bilhões para R$ 9,5 bilhões nos últimos dois anos, com reajustes significativamente acima da inflação. E mesmo com a participação da folha de pagamento total próxima a 73% da RCL, pode-se dizer que o Estado está cumprindo o limite legal de 60% de pessoal estipulado pela LRF. Aliás, cumpre folgadamente, já que o gasto apurado pelo Tribunal de Contas do Estado fica próximo de 50%. Como se dá esta mágica? Da mesma forma que várias outras apresentadas na apuração de contas de outros Estados: exclusões de gastos com pessoal decorrentes de diferentes interpretações dos Tribunais de Contas dos Estados.

As apurações dos gastos com pessoal para efeito do limite exigido pela LRF variam de Estado para Estado, mas excluem gastos com pensionistas, despesas de exercícios anteriores e decisões judiciais para pagamento de pessoal, entre outros. Isso explica, por exemplo, por que um Estado como o RS exclui mais de um terço do seu gasto efetivo com pessoal da apuração do limite de gastos previsto originalmente na LRF. Note-se que não há nada de ilegal nisso, já que está previsto na lei que os Tribunais de Contas dos Estados aplicarão a sua análise sobre a correta forma de apuração dos gastos com pessoal para efeitos da LRF. Mas há que perguntar se o que anda ocorrendo corresponde à correta interpretação da LRF e, principalmente, se corresponde aos princípios que nortearam o legislador a elaborar uma lei que disciplinasse as boas regras de responsabilidade para a gestão fiscal. O fato é que cada Tribunal de Contas vem interpretando a lei sob um critério diferente. E o resultado comum é o de que os gastos efetivos com pessoal não são mais limitados pelo teto da LRF. Se isso não fosse verdade, como Estados que não gastam nem 60% da sua RCL e investem cada vez menos poderiam estar em tão más condições financeiras?

A mais grave conseqüência da "brecha" na LRF acima descrita é que ela acaba por não se constituir num limitador de fato ao excessivo comprometimento das receitas estaduais com gastos para pagamento de pessoal. Voltando ao caso particular - representativo do caso geral -, se no RS se mantiver a proporção de distanciamento entre o gasto total com pessoal (73%) e o gasto com as exclusões feitas pelos critérios de interpretação da LRF (50%), então as despesas totais com pessoal poderão crescer até 90% da RCL sem que a LRF seja ferida neste critério. Hoje, o RS já tem comprometidos 116% da sua RCL com pessoal, dívida, custeio e investimento (restritos a menos de 5% e apenas com recursos vinculados). Com um crescimento de pessoal para aquele novo patamar, o comprometimento iria a absurdos 134%! Com isso se quer dizer que a aplicação da LRF deixou de ser, na prática, um limitador legal para que os gastos com pessoal nos Estados não inviabilizem a boa gestão financeira.

O problema aqui narrado não é apenas dos Estados, mas também do governo federal, já que a pior performance dos Estados compromete a obtenção de bons resultados primários do setor público consolidado e aumenta o volume de pressões dos governos estaduais sobre o governo federal. O passo inicial para a solução deste problema pode ser a aplicação do artigo 67 das Disposições Transitórias da própria lei - o que até agora não foi observado. Este artigo trata do acompanhamento da aplicação da lei por parte de um Conselho de Gestão Fiscal, com representantes de todos os Poderes e esferas de governo. Este conselho deveria harmonizar e fiscalizar as práticas de acompanhamento e avaliação da aplicação da lei. Em síntese, talvez o primeiro passo para que a execução da LRF resgate os princípios norteadores da sua elaboração seja o de aumentar o rigor para sua aplicação. Na análise econômica moderna, chama-se isto de enforcement da lei. No caso da LRF, isso poderia auxiliar para que os próximos governadores não tenham de repetir as mesmas queixas dos atuais.