Título: Doha também divide o Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2007, Notas e Informações, p. A3
O Mercosul reapareceu, de repente, nas negociações globais de comércio, para lembrar o Brasil de que ele não pode falar em nome dos sócios nem assumir compromissos com os quais eles não concordem. O Brasil tem sido, ao lado da Índia, do México e da África do Sul, um dos emergentes mais ativos nas discussões em que um número limitado de atores - nunca mais do que 30 - procura encontrar bases de acordo aceitáveis para os 150 ricos, pobres e remediados envolvidos na Rodada Doha.
Esses grupos limitados, às vezes compostos apenas por EUA, União Européia, Brasil e Índia, trabalham com o pressuposto de que possam ganhar tempo, sintetizando em seus debates os principais temas de interesse geral. Esse pressuposto se revela, às vezes, muito otimista. Seria diferente se cada um dos grupos em que se dividem os sócios da OMC fosse mais homogêneo, econômica e politicamente.
O acordo sobre a grande reforma do comércio internacional, objetivo da Rodada Doha, já teria sido alcançado há muito tempo, se a divisão entre países desenvolvidos e em desenvolvimento fosse a única relevante. Mas não é. EUA e União Européia continuam divididos quanto à política agrícola. Têm propostas diferentes para acesso a mercados e para redução de subsídios. Numa situação extrema, talvez possam encontrar uma base para ação conjunta, como encontraram, em 1994, na Rodada Uruguai.
Entre os emergentes a divisão é ainda maior e talvez mais difícil de superar. Os dois mais ativos nas negociações, Brasil e Índia, têm concepções diferentes sobre o grau de concorrência desejável nos mercados agrícolas. O Brasil, mais competitivo, está mais disposto a um jogo aberto, em troca de maior acesso aos mercados do mundo rico.
Mas também no Mercosul, formado por países capazes de competir em agricultura, as opiniões diferem quanto à barganha com o Primeiro Mundo. Nessa barganha, faltam resolver questões cruciais sobre subsídios e acesso a mercados, mas o chanceler brasileiro, Celso Amorim, tem respondido positivamente aos acenos dos principais negociadores do mundo rico. O Brasil, segundo o chanceler, fará concessões nos mercados de bens industriais e de serviços, se o outro lado se mostrar flexível e razoável.
Amorim mencionou, há dias, um programa de apoio aos setores que seriam mais afetados por uma abertura maior, como as indústrias automobilística, têxtil e de bens de capital. Mas o governo argentino tem um ponto de vista diferente. Buenos Aires não vai admitir que setores importantes sejam afetados a ponto de precisarem de medidas de apoio, disse ao jornal Valor o secretário de Relações Econômicas Internacionais da chancelaria argentina, Alfredo Chiaradia.
Na mesma entrevista, ele disse que o mundo rico exige muito dos emergentes e oferece pouco acesso a seus mercados de bens agrícolas. Quanto a isso, sua posição não difere essencialmente daquela sustentada por Amorim. A grande divergência está noutro ponto: na disposição de abrir os mercados com um pouco mais de ousadia, estabelecendo políticas internas de compensação e de apoio. Industriais brasileiros também reagiram mal às declarações de Amorim, mas suas queixas se referem principalmente ao câmbio valorizado.
O governo brasileiro não pode simplesmente deixar de lado a objeção formulada por Alfredo Chiaradia. O Mercosul tem uma tarifa externa comum. Essa tarifa é muito furada e imperfeita, mas, de toda forma, nenhum sócio do bloco pode negociar por sua conta reduções de barreiras alfandegárias. Sabia-se que esse problema surgiria mais cedo ou mais tarde, até porque a Argentina é mais protecionista e impõe barreiras até a produtos brasileiros. Para levar adiante a negociação da Rodada Doha, o governo brasileiro terá, enfim, de cuidar seriamente de um problema que tem dificultado o comércio entre os dois maiores sócios do Mercosul. Até agora, Brasília cedeu às pressões argentinas em favor da (pouco provável) preservação da unidade do bloco. Se quiser agir com maior ousadia na Rodada, não poderá mais contemporizar nas divergências com o parceiro regional.