Título: Cigarro ainda vence na Justiça
Autor: Sant'Anna, Emilio
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2007, Vida&, p. A30

Com apenas 10 anos, Maria Aparecida da Silva ficava fascinada vendo seu irmão fumar uma cigarrilha com cor e cheiro de chocolate. Nessa época, começou a fumar escondida da família. Durante 30 anos, manteve o vício - três maços por dia. Há 11, convive com uma cadeira de rodas. Em 1995, vítima de trombose, teve as duas pernas amputadas em um período de dois meses. Há dois anos, se tornou uma das poucas pessoas no Brasil a ganhar, em primeira instância, o direito a ser indenizada por uma empresa de cigarros.

Enquanto decisões como essas atingem cifras milionárias nos EUA, no Brasil elas apenas começam a aparecer. A decisão, em primeira instância, obriga a empresa Souza Cruz a indenizá-la em R$ 600 mil. A fabricante das marcas Hollywood e Free, que Maria fumou nesses 30 anos, recorre da decisão.

Essa vitória faz parte de um pequeno grupo de dez ações judiciais vencidas contra a Souza Cruz no Brasil, todas com recursos pendentes. Dona de cerca de 70% do mercado nacional, a empresa já foi acionada 475 vezes. A concorrente Philip Morris tem números mais discretos. Processada 24 vezes, nunca foi condenada.

Esses resultados revelam um placar amplamente favorável aos fabricantes, em que as poucas vitórias dos ex-fumantes podem ser revertidas em instâncias superiores. Para alguns especialistas em danos morais, no entanto, isso pode mudar. Um deles é o doutor em ciências jurídicas pela Universidade Yale, nos EUA, Attila de Souza Leão Andrade Júnior. Ele diz ser uma questão de tempo até um desses casos receber uma sentença favorável definitiva. Isso abriria um precedente na Justiça brasileira que as empresas tentam evitar . 'Há fundamento para essas decisões tanto aqui quanto lá fora', diz.

Ele cita uma decisão de 2002, no Estado americano da Califórnia, em que a Philip Morris foi obrigada a pagar indenização de R$ 28 bilhões a família de uma fumante vítima de câncer de pulmão. 'Nosso poder judiciário está muito tímido, ao contrário dos EUA', completa.

A fundamentação a que se refere o advogado é o prejuízo causado pelas empresas aos fumantes, com a sonegação de informações durante décadas sobre os riscos do cigarro. A ocultação das comprovadas evidências dos danos à saúde causados pelo cigarro também chama a atenção do professor de Direito Civil da PUC-SP, Frederico Carvalho Neto. Para ele, as informações contidas nos maços, exigência do Ministério da Saúde desde 1988, são insuficientes. 'Qualquer dano potencial deve ser informado pelo fabricante e não apenas pelo Ministério da Saúde', diz, referindo-se ao Código de Defesa do Consumidor. 'O cigarro causa tantos problemas que a rigor deveria vir com bula.'

REDENÇÃO

Hoje, com 51 anos, Maria Aparecida tem certeza de que será indenizada. 'Fui mutilada, lesada de uma forma brutal', diz. 'Sei que vou ganhar'. Antes de descobrir a doença, Maria Aparecida era vendedora autônoma, com renda de seis salários mínimos (cerca de R$ 2100). Hoje sobrevive com pouco mais de R$ 300 por mês. Além das amputações, ela tem hipertensão e problemas cardíacos. Sua esperança é poder se reabilitar parcialmente e conseguir usar pelo menos uma prótese. Para isso, espera a indenização.

A mesma doença de Maria Aparecida atingiu a mãe da artista plástica Sílvia Spiguel de Oliveira. Fumante desde os 15 anos, Clara Spiguel de Oliveira morreu em 2004, aos 85 anos, em Maringá (PR), sem as duas pernas. 'Quando minha mãe morreu ainda havia seis cigarros em um maço dentro de seu criado-mudo', diz.

Mesmo mutilada, com aterosclerose,doença vascular periférica e diabete, Clara nunca conseguiu parar de fumar. 'Ela pedia pelo amor de Deus para lhe dar cigarro, chegava a chorar se não tivesse', diz sua filha.

Dois anos após sua morte, a Souza Cruz foi condenada pela 5ª Vara Civil de Maringá a indenizar a família Spiguel em R$ 500 mil. A empresa recorreu da decisão ao Tribunal de Justiça do Paraná.

Para o advogado Rogério Gambeline, a satisfação profissional em obter uma vitória, deu lugar a motivos pessoais. A vítima, Sidney Guimarães, era seu tio. Morreu 'com o cigarro na boca' aos 37 anos, vítima de um ataque cardíaco. O caso teve início com uma ação movida por Ana Luiza Guimarães, viúva de Sidney, na 7ª Vara Cível de Campinas, interior de São Paulo, sendo a ré a Souza Cruz. O juiz rejeitou o pedido de indenização, pois não foi demonstrado o nexo causal entre o ataque cardíaco e o consumo de cigarros. Ana recorreu da decisão e seu pedido foi acolhido parcialmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A empresa recorreu e, neste mês, conseguiu reverter a decisão.

De acordo com o chefe do setor de contencioso da Souza Cruz, Antônio Cláudio Tarré, esses resultados desestimulam as ações contra a empresa. 'Os tribunais têm entendido que fumar é uma questão de livre-arbítrio', diz. Sobre a dependência causada pela nicotina e a dificuldade em largar o vício, Tarré repete que 'os tribunais têm entendido que algumas pessoas têm dificuldade em parar de fumar, mas também é fato que muitas delas conseguem, desde que estejam motivadas', diz.

Em comunicado oficial, a Philip Morris compartilha da mesma opinião. 'Reconhecemos que o consumo de cigarros causa dependência e doenças graves. Parar de fumar pode ser difícil, mas muitas pessoas já conseguiram. Parar de fumar é a única maneira eficaz para reduzir os riscos do fumo à saúde.'