Título: Estatísticas no pau-de-arara
Autor: Magnoli, Demétrio
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2007, Espaço Aberto, p. A2
¿A pobreza tem cor e raça.¿ O adágio revela uma concepção sobre o Brasil, difundida pela Secretaria da Igualdade Racial (Seppir) e pelo cortejo de ONGs defensoras das leis raciais. O Brasil não seria uma sociedade de classes atravessada por profundas desigualdades de renda, mas uma sociedade estamental dividida rigidamente por fronteiras ¿raciais¿. Até há pouco, a demonstração ¿científica¿ dessa concepção dependia de perversas interpretações seletivas de informações disseminadas pelo IBGE. A dificuldade foi solucionada pela pesquisa Retratos da Desigualdade, publicada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que ganhou uma segunda edição em 2006.
A manipulação de estatísticas com fins ideológicos é uma velha arte. O IBGE quase sempre conseguiu passar incólume pela tentação de torturar os números até fazê-los confessar aquilo que interessa ao poder de turno. O Ipea aceitou converter-se em câmara de tortura: a pesquisa, conduzida por irmãos de fé da ministra Matilde Ribeiro, da Seppir, suplicia informações do banco de dados do IBGE até ¿provar¿ os seus próprios pressupostos.
O ponto de partida é um choque de alta voltagem: a fusão das categorias censitárias ¿pretos¿ e ¿pardos¿ na categoria ideológica ¿negros¿. Para o IBGE, ¿pardos¿ são 42% dos brasileiros, um número que surge da soma de todos os que não se declaram ¿brancos¿ (51%), ¿pretos¿ (6%), ¿amarelos¿ ou ¿indígenas¿ (1%). Na vida real, os ¿pardos¿ são os quase-brancos, quase-índios, quase-pretos da geléia geral brasileira. Os fanáticos das raças, embaraçados pela ¿impureza¿, simplesmente decidiram eliminá-los das estatísticas, sob o argumento arbitrário de que são ¿afrodescendentes¿. Na Amazônia, por exemplo, eles refletem mais um substrato indígena e podem não ter ascendência africana significativa.
Mas a pesquisa quer chegar a um fim definido a priori e não se detém diante de obstáculos éticos, como o princípio da autodeclaração, ou científicos, como a genética. A supressão dos ¿pardos¿ produz magicamente um Brasil dividido ao meio em ¿brancos¿ e ¿negros¿ (48%), o modelo ideal para os engenheiros de leis raciais. Todos os gráficos e tabelas apresentados trazem a observação de que ¿a população negra é composta de pretos e pardos¿. Essa nota ¿técnica¿ é o pilar estrutural da pesquisa. Sem ele as conclusões desmoronariam por inteiro, pois os indicadores do IBGE insistem em mostrar que, em média, a pobreza atinge mais amplamente os ¿pardos¿ do que os ¿pretos¿. Os primeiros têm menor rendimento médio e menos anos de estudo, um forte indício de que as desigualdades sociais no País não decorrem do preconceito racial.
Depois do choque elétrico, é tempo de uma sessão de afogamento: a opção preferencial pelas médias gerais. O procedimento, típico das abordagens metodológicas de crianças que começam a descobrir o universo das estatísticas, não decorre de incompetência técnica, mas da paixão ideológica. Ele funciona para extrair as ¿confissões¿ paralelas de que os pobres são pobres por serem ¿negros¿ e de que a pobreza não ¿gruda¿ em pessoas de pele menos escura.
No Brasil, o 1% mais rico da população, constituído essencialmente por ¿brancos¿, detém renda quase igual à dos 50% mais pobres. Essa disparidade extrema puxa para cima todas as médias referentes aos ¿brancos¿, escondendo as massas de pobres com pele clara que habitam as periferias das metrópoles, o sertão nordestino e as várzeas amazônicas. É o cenário estatístico dos sonhos, num país onde o governo federal já patrocina cursos de alfabetização em favelas exclusivos para ¿negros¿.
Finalmente, utiliza-se a palmatória para dissuadir a vítima de falar sobre as desigualdades regionais. Cerca de 75% dos ¿brancos¿ vivem no Sudeste e no Sul, as regiões mais ricas do País, enquanto 53% dos ¿negros¿ vivem no Nordeste e no Norte, as regiões mais pobres. De modo geral, segundo dados do IBGE, os ¿negros¿ do Sudeste e do Sul apresentam indicadores sociais melhores que os dos ¿brancos¿ do Nordeste e do Norte. Esses cruzamentos de informações brilham pela ausência na pesquisa dos fanáticos das raças. Mas quem não é fanático sabe o que eles revelam: a ¿questão regional¿ é muito mais relevante que a ¿questão racial¿ para explicar as desigualdades sociais no Brasil.
Mesmo assim, felizmente, não ocorre a ninguém sugerir cotas para nordestinos nas universidades ou no mercado de trabalho. Um estudo estatístico honesto sobre a desigualdade de renda no Nordeste, apresentado em maio de 2006 ao Encontro Regional de Economia da Anpec/BNB, prova que as diferenças de rendimento no interior de grupos de ¿raça¿ são muito mais significativas do que as desigualdades entre esses grupos na determinação da desigualdade total. Os autores, Marcelo Siqueira e Márcia Siqueira, provavelmente serão logo denunciados como intelectuais a serviço da ¿elite branca¿.
Os Retratos da Desigualdade do Ipea são qualificados, no texto de apresentação, como ¿poderoso instrumento na luta¿ pela igualdade de raça. Eis, para variar, uma afirmação incontestável: a pesquisa é um discurso puramente ideológico, vestido nos trajes sedutores oferecidos pela estatística e veiculado por órgão de Estado como se fosse investigação sociológica. A sua meta não é iludir as pessoas familiarizadas com estatísticas, mas subsidiar a propaganda política oficial. Afinal, como se sabe, a repetição incansável de uma mentira é capaz de convertê-la, provisoriamente, em verdade absoluta.
No Brasil, a pobreza não tem cor - ou, melhor, tem todas as cores. Essa evidência, que traz implicações políticas óbvias, não interessa aos promotores das leis raciais e deve ser calada no momento em que o Congresso se prepara para votar o Estatuto Racial. Assim se faz ¿política social¿ sem custo financeiro, mas com elevados dividendos eleitorais.