Título: O déficit democrático do Legislativo
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

A revista The Economist, de 20 de janeiro, identificou um déficit democrático no Parlamento da União Européia. De início argumenta que numa democracia normal os políticos atuam com suas promessas eleitorais, os eleitores escolhem um Parlamento para fazer leis e há um governo que administra as políticas públicas legisladas, as quais devem refletir a escolha dos eleitores. Se isso não ocorre, o governo e o Parlamento são cobrados na eleição seguinte.

O déficit democrático será tanto maior quanto maior for a distância entre as vontades dos eleitores e as políticas públicas definidas dessa forma. No Parlamento Europeu ele existiria porque os partidos políticos, exceto os Verdes, não explicitam aos eleitores o que pretendem fazer nesse Parlamento. Note-se que é o único Parlamento internacional eleito diretamente e com alguma autoridade legislativa.

Ainda que o déficit democrático não seja diretamente mensurável e de difícil medição indireta - via indicadores das ações parlamentares e das preferências dos eleitores -, pode-se argumentar que no Brasil o déficit democrático no Legislativo é imenso, tanto no plano federal como no estadual e no municipal.

Uma evidência indireta desse déficit são as pesquisas que apontam a péssima avaliação que os cidadãos fazem dos congressistas. Essa avaliação é muito influenciada pelo mau comportamento pessoal de parlamentares, evidenciado por uma sem-vergonhice ímpar e explícita. A avaliação não se detém no exame detalhado do trabalho legislativo, embora pese muito a percepção de que muitos parlamentares legislam em causa própria e corporativa - como no caso dos seus salários e mordomias, ou absolvendo seus pares "mensaleiros" e "sanguessugas" - e de outros interesses que não os dos cidadãos.

A discussão do déficit democrático é interessante, mas no Brasil deveria integrar-se a outra, questionando-se preliminarmente a representatividade dos parlamentares como tais. Ou seja, sua autenticidade enquanto representantes do povo, escolhidos por um processo eleitoral que não distorça essa representação.

Esse tema não é abordado pela revista, provavelmente porque pressupõe que nos países que formam a União Européia a representatividade não esteja muito distante da que corresponde à democracia normal de que fala. Nesses países predominam os regimes parlamentaristas, que se destacam por sua interação com o eleitor e com os partidos políticos, a qual se estende aos governos que formam para executar a legislação aprovada. Predominam sistemas de votação distritais, ou em listas partidárias, ou combinações de ambos. Ademais, se os eleitores se sentem contrariados com os parlamentares e com os governos que formam, a própria dinâmica do sistema parlamentarista facilita a troca.

Já no Brasil, além de um forte Executivo que a obscurece, a Casa mais importante do Legislativo, a Câmara, é eleita por um sistema distorcido, o de votação proporcional, que não cria vínculos entre eleitores e deputados durante o período fixo em que estes exercem seus mandatos. Assim, a representação já padece de um pecado original que compromete sua eficácia.

Dentre outras distorções típicas desse sistema se destaca a de que, com muitos votos dados a uns poucos candidatos, os eleitores podem ser representados por outros que não escolheram, ou até detestáveis, eleitos pelo voto de legenda. Outra é que com os parlamentares eleitos por votação estadual, e não distrital, a representatividade fica pulverizada geograficamente, dificultando que prestem contas a seus eleitores, ou que sejam cobrados por estes por seu desempenho.

Assim, por exemplo, no caso do Estado de São Paulo, com 70 deputados federais, como um eleitor pode acompanhar o que fazem todos eles? E qual seria seu representante? A quem recorrer se não há um representante distrital e os eleitos não se sentem comprometidos com uma clientela assim dispersa? Para testar pessoalmente a representatividade, permito-me sugerir ao leitor perguntar a si mesmo: quem o representa na Câmara Municipal local, no Legislativo estadual e na Câmara de Deputados?

Há quem diga que parte da culpa cabe ao eleitor, desinteressado de questões políticas, em particular do que se passa no Legislativo, deixando assim de acompanhar o trabalho dos eleitos e cobrar-lhes desempenho. Entretanto, pode-se retrucar que o próprio sistema proporcional deseduca o eleitor nessa direção e que os defeitos desse sistema bastam para recomendar sua substituição pelo distrital, inclusive por este ser mais educativo do exercício da cidadania. Reforçado em sua representatividade, o Legislativo se fortaleceria também diante do Executivo.

Freqüentemente critico o sistema eleitoral que produz os integrantes do Poder Legislativo. Desta vez, inspirou-me a revista citada, e também o recente e deprimente espetáculo de eleição dos novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, em pleitos centrados em personalidades, poderes, subserviências e recompensas. Distante, o povo, como sempre, ficou nas arquibancadas da mídia a observar atores em papéis que não guardam nenhuma correspondência com o que se esperaria deles numa democracia digna do nome.

Nessa atitude, o País fica permanentemente a discutir que parlamentares prestam ou não prestam, sustentado pela infundada esperança de eleger gente melhor na próxima eleição. Mas raramente se discute o sistema eleitoral que em larga medida impede isso, produzindo um Legislativo com enorme déficit democrático, assentado nesse outro de representatividade parlamentar.