Título: Doha - melhor, impossível
Autor: Marconini, Mário
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Se um país emergente faz um acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mercados financeiros no mundo inteiro reagem quase que instantaneamente. Se Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), anuncia a conclusão de seis anos de negociação envolvendo mais de 140 países, os mercados mal notam - investidores, tampouco. O comércio mundial nunca cresceu tanto, precisamente enquanto a Rodada de Doha não se define. Seria esta a razão para não se definir - o fato de que ninguém particularmente precisa de rodada alguma? Quão importantes são, afinal, as negociações comerciais multilaterais?

Os que 'gostam' do assunto e torcem pelo fortalecimento do sistema esclarecem que a coisa sempre foi assim, marcada por crises, interrupções, muito artigo de jornal, muita visibilidade para os negociadores, muitas reuniões e pouco resultado - até que de repente tudo acontece, tudo se desbloqueia. Para os menos entusiasmados com os benefícios do sistema, esta rodada indica algumas coisas preocupantes, tais como a falta de compromisso por parte dos grandes protagonistas da negociação ou uma tendência generalizada ao protecionismo.

A verdade é que esta rodada é feita tanto de mesmice como de novidade. As novidades são importantes: a primeira vez que a China participa, com tudo que isso assusta e ameaça; os EUA como grande protecionista agrícola, em pleno contraste com a posição norte-americana na Rodada Uruguai, que evoluiu a partir de uma proposta inicial de 100% de cortes em subsídios e tarifas agrícolas; uma evidente falta de apoio do setor empresarial nos países da OCDE; uma Europa mais preocupada com sua própria expansão do que com negociações multilaterais que requerem difíceis concessões de sua parte; a pretensão de que a rodada seja uma 'agenda para o desenvolvimento'.

A mesmice também é importante: negociações pautadas por trocas de 'gentilezas' entre as delegações; uma definição gradativa de espaços de negociação; o surgimento de uma pressão coletiva que influencia processos internos nos países; uma visão de que o sistema multilateral é parte crucial da governança econômica global; uma apreciação de que a previsibilidade das regras e dos princípios multilaterais é importante para conter radicalismos econômicos e regulatórios; o risco real de uma desmoralização do sistema multilateral de comércio. O prestigioso International Institute for Economics, de Fred Bergsten, por exemplo, diz que o fracasso de Doha resultaria no esquecimento da OMC e no revigoramento de acordos entre os grandes parceiros comerciais mundiais - EUA-Japão e até mesmo um acordo de livre comércio entre Washington e Bruxelas -, algo nada alvissareiro para o mundo em desenvolvimento.

Para que lado pende a balança? A verdade é que ninguém quer pagar o preço pelo fracasso da rodada. O que vemos agora é um sparring pelos jornais, cada negociador culpando o próximo e esperando evitar ser aquele que sobra falando sozinho - o que indica, por sua vez, que muito provavelmente não há ainda algo pronto que possa servir de prato (pacote) principal no banquete final de Doha.

Para os grandes, não seria um desastre continuar com acordos pontuais, em que podem obter concessões sem ceder muito e, assim, satisfazer Congressos e Parlamentos e seguir fingindo que gostam de livre comércio. Para os pequenos, tudo depende. O jogo geopolítico que vemos em nossas partes do mundo poderia até se beneficiar de 'menos' OMC. Não haveria o livre comércio para 'atrapalhar' os conchavos políticos com vizinhos ou 'aliados distantes do Sul' - acordos que não resultam em comércio algum, mas que demonstram ao mundo que temos uma política externa ideológica, arcaica e baseada em preceitos inexistentes no mundo atual (desde quando, por exemplo, a China é 'pró-Sul'?). Evo Morales já disse que quer retirar as concessões feitas na Rodada Uruguai - ou seja, ele não está sequer se referindo a Doha!

A verdade é que estamos por um triz de lograr um acordo: falta muito em termos gerais e técnicos, porém pouco em termos específicos e políticos. Três números mágicos nos separam da conclusão: os US$ 15 bilhões ou US$ 18 bilhões de teto para os subsídios domésticos nos EUA, os 54% ou menos de cortes em tarifas agrícolas européias e os 65% ou menos de cortes em tarifas industriais consolidadas do G-20 (ou seja, cortes no teto permitido, e não no que se aplica no dia-a-dia comercial dos países) - os três devidamente amparados por exceções e flexibilidades, é lógico. O resto da rodada? Importante, sim, porém não determinante a ponto de bloquear as negociações de novo.

Doha concluída, o sistema não seria desmoralizado e os cataclismas expostos pelo think tank de Fred Bergsten não se dariam. Os EUA se comprometeriam a manter mais ou menos o que já têm em subsídios agrícolas, e não em cortar substancialmente, como quer o G-20. A União Européia seguiria cortando subsídios domésticos e à exportação de acordo com o que já tinha acordado internamente em Bruxelas, agregando apenas cortes tarifários onde não possa evitar de fazê-lo. O G-20 se comprometeria a aproximar suas tarifas consolidadas na OMC de suas tarifas aplicadas, e até mesmo a cortar algumas aplicadas no processo - algo que é visto como importante, já que a Índia, por exemplo, nem sequer tem todas suas tarifas consolidadas até hoje!

O esforço dos primeiros seis anos do período pós-11 de Setembro se resumiriam, então, a um exercício de manutenção do sistema, e não propriamente de sua recauchutagem. Ou seja, livre comércio mesmo, muito menos do que se esperaria. Desenvolvimento, então, nem falar. A vitória de Doha seria outra: a preservação da previsibilidade nas relações comerciais mundiais e a consolidação de um viés pró-comércio, ainda que tímido, nos compromissos assumidos. Melhor do que isso, impossível.