Título: 'Mercosul não é o destino do País'
Autor: Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2007, Nacional, p. A11
O Brasil é um país importante, decisivo para a integração do continente, com o qual os Estados Unidos precisam dialogar a respeito de assuntos como energia, livre comércio, infra-estrutura regional - e as negociações do subsecretário de Estado para Assuntos Políticos Nicholas Burns, em São Paulo e Brasília, mostram como o governo George W. Bush vê as relações entre os dois países, afirma o ex-embaixador brasileiro em Washington, Roberto Abdenur.
A discussão sobre etanol vale como exemplo: o que se discute atualmente, pelos dois lados, são 'os passos que devem ser dados para criar um grupo de grandes produtores que inclua países como Índia, África do Sul e China, e iniciar um processo de globalização dessa fonte de energia', diz ele. Ao tratar desse problema, Burns está 'ecoando colocações que partiram, desde seu início, do governo do Brasil', ressalta Abdenur, que, como embaixador, participou em Washington de vários encontros sobre o tema.
Ele entende, diante de fatos como esse, que o Itamaraty não precisa apegar-se com tanta ênfase à idéia de que o Brasil 'tem que estar junto dos vizinhos' e alinhado aos países em desenvolvimento para avançar no mundo. 'Não estou de acordo com a idéia de que o Brasil não tem futuro sem o Mercosul ou de que o Mercosul é o destino do Brasil', acrescentou o ex-embaixador, que agitou os meios diplomáticos, no fim de semana, com as fortes críticas que fez - numa entrevista à revista Veja - ao 'antiamericanismo atrasado' e à ênfase ideológica que, em seu entender, orientam a diplomacia brasileira.
Recém-aposentado, e agora instalado no Rio de Janeiro, Abdenur defende nesta entrevista ao Estado algumas de suas visões sobre a diplomacia brasileira, 'fruto de 45 anos de atuação diplomática'. Ele acredita que, se o que disse 'contribuiu para suscitar o debate', o resultado do episódio é positivo. A propósito, faz também uma advertência: 'O País está muito voltado para assuntos internos. A política externa precisa ser mais explicitada e debatida.'
Como o sr. vê, agora como ex-embaixador, essa visita do subsecretário Nicholas Burns ao Brasil?
Ela estava prevista há bastante tempo e foi adiada mais de uma vez por problemas de agenda. Burns é uma figura importante, muito chegada à secretária de Estado, Condoleezza Rice. O principal condutor dos assuntos bilaterais, no entanto, é o subsecretário adjunto para Assuntos de América Latina, Thomas Shannon. Tive com Shannon uma relação muito cordial, ele se ocupava do National Security Council (NSC), que é a assessoria da política externa imediata do presidente. Shannon também já havia se encontrado antes com o meu sucessor, o embaixador Antônio Patriota, que tem no Itamaraty um cargo correspondente ao de Burns.
Que tipo de visão os dois têm do Brasil no contexto regional?
Os americanos tinham antigamente uma visão de 'América Latina' como um todo, com nações iguais. Mas o Brasil , já desde governos anteriores, por seu papel nos processos de integração regional, em áreas como energia, livre comércio, infra-estrutura e outras, é reconhecido na sua individualidade pelo establishment americano. Nas discussões sobre etanol, o subsecretário Burns está ecoando colocações que desde o início partiram do lado brasileiro. O Brasil tem sido um dos motores desse processo. Tanto que o Itamaraty criou recentemente um Departamento de Energia. O esforço central desse grupo é aglutinar grandes produtores - além de Brasil e Estados Unidos, também China, Índia e África do Sul - e somar esforços para avançar no processo de globalização do etanol.
À luz desses contatos, como o sr. vê as perspectivas do Mercosul?
Como disse na entrevista à Veja, e reitero aqui, foi equivocada a decisão de aceitar muito rapidamente a Venezuela como membro pleno do Mercosul, sem passar pelas etapas de aproximação. Acho que faria mais sentido tê-la como membro associado e depois ver como as coisas evoluem. Desde cedo estava claro, para mim, que a agenda econômica do presidente Hugo Chávez não se coaduna com os princípios e fundamentos do que deve ser o Mercosul. E sua agenda política tampouco se coaduna com o compromisso democrático do Mercosul. Chávez é um fator de perturbação. Entendo que a presença da Venezuela dentro do Mercosul, como país associado, não seria problema. Mas como membro pleno, com a política externa que ele faz e o que faz internamente em matéria de desfazimento da democracia na Venezuela, isso não se coaduna com o bloco e deslustra o Mercosul no plano internacional.
Que caminhos a diplomacia brasileira devia seguir, a seu ver, para reduzir os erros cometidos até aqui?
Começo por pedir uma correção ao editorial publicado anteontem pelo Estado. Longe de mim questionar a parceria estratégica com a China. Existe algo chamado parceria estratégica Brasil-China, que eu apoio fortemente e que deve ter plena continuidade. Nesse sentido, lembro que fui embaixador em Pequim entre 1989 e 1993. Que participei das etapas do projeto espacial conjunto. A certa altura, as verbas do Brasil para esse projeto secaram, e eu, com licença da expressão, 'segurei no cuspe' esse acordo, reafirmando aos chineses que aquilo era o começo de uma parceria estratégica. Mais tarde, mencionei ao presidente chinês, em um vôo de visita ao Brasil, que os dois países lançassem uma parceria estratégica. Ele desembarcou em Brasília e sugeriu essa idéia ao então presidente Itamar Franco.
O sr. é favorável, então, à parceria entre os dois países?
Existe essa parceria e eu a apóio. O que critico é que se deu a impressão, mais cedo do que se devia, no processo, de que a China seria uma espécie de aliada do Brasil no confronto entre ricos e pobres, no confronto Norte-Sul. Como eu disse na entrevista, o meridiano que dividia o mundo entre Leste e Oeste sumiu do mapa com a queda do Muro de Berlim e o fim do comunismo na União Soviética e na Europa Oriental. O paralelo Norte-Sul está se desvanecendo. Nestes últimos 20 anos surgiram o processo de globalização, a União Européia e sua moeda, a ascensão da China, agora da Índia. O que eu critiquei é uma idéia de que o Brasil, para avançar no mundo, tem de estar junto com seus vizinhos numa grande coesão, e alinhado fortemente com países em desenvolvimento. Não estou de acordo com a idéia de que o Brasil não tem futuro sem o Mercosul, ou de que o Mercosul é o destino do Brasil. Acho que em diplomacia não há destinos, há opções. Opções que devem ser concebidas e desenvolvidas como políticas de Estado, que atravessem vários governos.