Título: Previdência, transparência e inação
Autor: Werneck, Rogério L. Furquim
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2007, Economia, p. B2
Não há como ser contra um tratamento mais transparente das contas da Previdência Social. A questão previdenciária ocupa o centro do imbróglio fiscal com que hoje se debate o País. Quanto mais clara for a percepção do que está ocorrendo na Previdência mais fácil será adotar medidas que possam conter a preocupante expansão das despesas previdenciárias. Sobre isso, não há dúvida. O que, sim, causa apreensão é estar o governo empenhado em racionalizar sua inação no front da reforma previdenciária, com base em falsas conclusões extraídas de uma contabilização supostamente mais transparente dos fluxos financeiros da Previdência.
No seu primeiro mandato, o governo Lula mobilizou recursos políticos consideráveis para levar adiante a reforma de 2003, que introduziu modificações fundamentais no regime previdenciário dos servidores públicos. Mas são outros os tempos. E o governo opera agora com valores e tripulação muito diferentes dos que tinha há quatro anos. Já não há mais a mesma disposição de fazer avançar a reforma previdenciária, ainda que vozes isoladas no Planalto continuem alertando que a agenda de reforma relacionada ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS) está caindo de madura.
Já há alguns meses, o governo andava à cata de uma boa história que pudesse fazer o avanço da reforma previdenciária parecer dispensável. Ao que tudo indica, a busca teve sucesso. O presidente parece ter sido convencido de que, se as contas forem refeitas com cuidado, o déficit de R$ 13,5 bilhões, referente à parte do RGPS voltada para os trabalhadores urbanos, fica reduzido a R$ 3,8 bilhões. E de que boa parte dos R$ 42 bilhões de déficit total do RGPS pode ser atribuído à Previdência rural e a renúncias fiscais erroneamente lançadas à conta da Previdência, e não do Tesouro. Sendo ¿tão pequeno¿ o déficit no RGPS urbano, já não haveria por que introduzir mudanças que pareciam inevitáveis, como fixação de idade mínima para aposentadoria e desvinculação dos benefícios previdenciários do salário mínimo. Bastaria um esforço de melhora de gestão.
Em boa medida, o governo tem entendido melhora de gestão como aperto de fiscalização e aumento de arrecadação. No biênio 2005-2006 o crescimento real médio dos benefícios previdenciários pagos pelo RGPS urbano foi de 9,2% ao ano. Para que o déficit do RGPS urbano pudesse ser mantido constante como proporção do PIB, a arrecadação líquida do sistema teve de crescer, em termos reais, a pouco mais de 10% ao ano. Ou seja, a uma taxa quatro vezes maior que a taxa média real de crescimento do PIB no período.
O que vem sendo proposto, para que o déficit de R$ 13,5 bilhões de 2006 seja encolhido para R$ 3,8 bilhões, é que R$ 9,7 bilhões sejam contabilizados como renúncias fiscais previdenciárias. Mais de 50% deste montante corresponde ao que supostamente poderia ter sido arrecadado de pequenas empresas que se beneficiam do Simples. Isso ilustra com clareza o que há de errado com a visão que inspira o argumento. É sabido que mais da metade do mercado de trabalho do País está mergulhado na informalidade. Há muitas razões para isso. A mais importante é que boa parte das pequenas empresas não tem condições de arcar com a carga tributária (inclusive encargos previdenciários) que a formalização impõe. Ao propiciar desoneração, simplificação e desburocratização, o Simples atua como um paliativo que reduz a evasão e estimula a formalização. Não faz sentido, contudo, que o governo parta para a contabilidade criativa e credite à Previdência a receita que supostamente poderia estar sendo arrecadada se as empresas não tivessem sido beneficiadas pelo Simples e estivessem submetidas a alíquotas normais.
É essa a história que está sendo vendida ao presidente. As contas fecham mesmo que o sagrado direito de aposentadoria com qualquer idade fique intocado. Aos que têm condições de pagar a Previdência, aplica-se a fiscalização, para tentar manter o crescimento real da arrecadação em 10% ao ano. Aos que não têm, o governo oferece a desoneração do Simples. Mas contabiliza como receita virtual da Previdência o que teoricamente poderia ter sido arrecadado se a desoneração não tivesse sido concedida. Quanto mais generosa a desoneração, mais empresas decidirão se formalizar, optando pelo Simples. E mais sólidas parecerão as contas da Previdência. Uma beleza.