Título: Política externa nua e crua
Autor: Abreu, Marcelo de Paiva
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2007, Economia, p. B2
Embora o Itamaraty esteja envidando esforços para minimizar as repercussões da atabalhoada remoção do embaixador Roberto Abdenur de Washington, e em particular da sua entrevista à revista Veja, ficou difícil evitar que a imprensa discuta as dificuldades substantivas que enfrenta a política externa.
No plano pessoal, a entrevista tem o seu lado de desabafo, justificável em vista dos longos anos de amizade do embaixador com o chanceler e da forma deselegante e rancorosa que caracterizou a sua remoção.
Além de enganosa, a reação instantânea do chanceler à entrevista foi deplorável. Num segundo momento, lembrou-se da substância das críticas e tentou remendar da melhor forma possível. Afirmou que, se Abdenur tinha visão crítica da sua gestão no Itamaraty e da política externa, deveria ter-se afastado do posto mais cedo. Esse critério quanto à postura requerida de funcionários com relação à política oficial como condição para desempenho de cargo público não parece ter sido adotado pelo próprio ministro em sua carreira. Consultando, por exemplo, o Almanaque do Pessoal de 1992, para evitar as imprecisões no currículo oficial do chanceler na página do Itamaraty na internet, constata-se que, durante a ditadura militar, Celso Amorim progrediu rapidamente na carreira, sendo promovido, quase sempre por merecimento, até chegar a ministro de segunda classe, em 1980. Só a promoção a ministro de primeira classe foi no governo Sarney. Foi, também, diretor-geral da Embrafilme, em 1979-1982, no governo Figueiredo. Tomando por base o critério proposto pelo próprio chanceler, e dado que não se afastou do Itamaraty entre 1964 e 1985, de duas, uma: ou estava afinado com os governos do regime militar ou agiu da forma que agora condena no caso de Abdenur. Apesar de discordar de aspectos da condução de políticas públicas, tentou, como servidor do Estado, trabalhar da melhor forma possível em defesa do bem comum.
As críticas gerais de Abdenur podem ser divididas em duas categorias: as que se referem à gestão do Itamaraty e as que têm como alvo a política externa. Quanto à gestão do Itamaraty, a reiteração das constatações de que menor competência profissional pode ser compensada por afinidade política ou ideológica e de que as promoções e remoções incorporam tais deformações aponta para o desaparecimento da carreira diplomática como exemplo para o serviço público. O registro da escolinha de Samuel Pinheiro Guimarães é melancólico. É iniciativa tão ridícula que raposas da Casa se apressam a rotulá-la como folclore itamaratiano. Ledo engano, passou a ser marca registrada do fomento do pensamento único. Não é folclore, é história institucional. Outros desmandos poderiam ter sido listados, na mesma direção, tais como a censura bissexta das matérias publicadas pela imprensa incluídas na seleção diária circulada pelo Ministério.
Quanto à substância da política externa, os comentários do embaixador Abdenur foram até comedidos. Criticou aspectos particularmente vulneráveis da atual política. No plano estratégico global, questionou acertadamente ¿a dimensão exagerada dada à cooperação entre países menos desenvolvidos como eixo básico da nossa diplomacia¿, que revela ¿antiamericanismo atrasado¿, embora elogie iniciativas como a cooperação com a Índia e a África do Sul e o G-20 na Organização Mundial do Comércio (OMC). Quanto à política latino-americana, as críticas são mais contundentes, ao sublinhar o primitivismo do presidente venezuelano, Hugo Chávez, e o equívoco que foi o ingresso da Venezuela no Mercosul. De fato, não deve agradar a um veterano embaixador constatar que o Brasil na América Latina está nitidamente a reboque da Venezuela de Chávez.
Nas suas considerações sobre outros aspectos da política externa, o embaixador foi generoso. Da mesma forma que a ênfase no Sul-Sul interferiu com as relações Norte-Sul, a ênfase no pleito para entrar no Conselho de Segurança da ONU, que dominou a diplomacia brasileira no último quadriênio, não parece justificada, especialmente em termos de atração de recursos escassos de todo o tipo para atender a esta prioridade. Um bom exemplo é a farta criação de Embaixadas que não teriam justificativa fora da aritmética de votos nas Nações Unidas. Na mesma linha, o embaixador, ao considerar excelentes as relações entre Brasil e Estados Unidos, enfatizou o ângulo de Washington, das relações entre a Embaixada em Washington e o governo norte-americano. Mas, na essência, é difícil crer que tudo vá tão bem quando tantas posições adotadas pelo governo brasileiro guardam marcas nítidas de dispensável ranço antinorte-americano. Do ponto de vista dos Estados Unidos, o papel fundamental do Brasil, hoje, no contexto latino-americano é controlar os excessos do populismo retrógrado na Venezuela, na Bolívia e no Equador. Um híbrido de tradutor de bolivarianismo e de ¿deixa disso¿ na interface de líderes políticos histriônicos e primitivos com a comunidade internacional.
Do episódio podem ser retiradas conclusões importantes. Fora a negociação na OMC - mesmo assim, sujeita a chuvas e trovoadas quanto a possíveis concessões dos Estados Unidos, da União Européia e dos parceiros do G-20, em particular da Índia -, o panorama das realizações da política externa brasileira é desértico. Talvez mais importante, os danos que estão sendo causados à diplomacia brasileira pelo atual governo correm risco de ser permanentes. Não será trivial reverter as conseqüências de políticas hoje adotadas, inclusive porque gerarão bandeiras corporativistas. O Itamaraty de hoje já é bem pior do que o de ontem, mas é, provavelmente, melhor do que o de amanhã.
É triste.