Título: A amazônia e a energia nuclear
Autor: Cavalcanti, Sandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Não pensem os leitores que entro neste assunto por razões políticas ou partidárias. Não. É que nasci em Belém do Pará. Saí de lá muito pequena, mas nunca me separei de minhas raízes. Aliás, isso aconteceu com toda a geração de meu pai, que, a exemplo de seus contemporâneos, não suportou ver a sua terra ser entregue, pelo ditador Vargas, a atrasados e incompetentes representantes. Foi grande o êxodo de paraenses no período de 1932 a 1950. Aquela geração, preparada, culta, que havia estudado no exterior, deu-se ao luxo de aderir à Revolução de 1932. O Pará apoiou ostensivamente a iniciativa dos grandes líderes paulistas. Até tropas mandaram para ajudar!

Derrotados, foram perseguidos pelo caudilho. Muitos emigraram. ¿Pegaram um Ita no Norte e vieram para o Sul maravilha¿ - fizeram isso, é claro, antes de Vargas e seu grupo de fronteiriços atrasados destruírem o transporte marítimo nacional, estatizando e extinguindo a nossa cabotagem.

Nas voltas que o mundo dá, tive a sorte de trabalhar durante dois anos numa admirável empresa brasileira de consultoria, a Lasa, ligada à Aerofoto Cruzeiro do Sul. As duas faziam parte do Grupo Cruzeiro do Sul, pioneiro de fato nos transportes aéreos do Brasil.

Participei modestamente da equipe que ganhou uma exigentíssima concorrência pública para fazer o levantamento aerofotogramétrico da Região Amazônica. Até então, nos idos de 1960,1970 e1971, quando o Brasil ainda estava proibido de usar o progresso da informática, esses levantamentos eram feitos por aviões equipados com moderno instrumental fotográfico. O processo era lento e penoso, pois dependia inteiramente de condições climáticas e visibilidade. De noite e com tempo fechado, nada feito. O trabalho ficava muito caro e, muitas vezes, o resultado era sofrível.

Acontece que os excelentes técnicos da Lasa, na maioria engenheiros com grande conhecimento internacional, sabiam que lá fora novas tecnologias haviam criado, para essas tarefas, processos muito mais eficientes, graças às tentativas do homem para avançar na conquista do espaço. Foi assim que, entrando em contacto com a Aeroservice, que integrava os projetos da Nasa, a Lasa obteve autorização para usar o novo sistema de levantamentos baseados no radar. O acerto foi sensacional. Em pouco tempo a proposta ficou pronta e o consórcio liderado pela Lasa ganhou a concorrência.

Num jato Caravelle da Cruzeiro do Sul foi instalado o equipamento móvel. Nas cidades de contacto, em terra, ficavam as estações de controle. Sem precisar se preocupar com a visibilidade, totalmente independente de nuvens, de chuvas, da luz do dia ou de sua ausência, à noite, o Radam ¿fotografou¿ pacientemente todo o solo amazônico, fornecendo valiosas, inéditas e surpreendentes informações.

A partir delas, a Amazônia passou a ser mais bem aproveitada. E é ainda graças a elas que precisa ser mais bem defendida.

¿Aquela região ainda não está pronta! A natureza ali, na chamada Hiléia, ainda está se organizando.¿ Esta observação foi feita pelo marechal Rondon, o brasileiro que melhor conheceu a Amazônia. Meu pai ouviu-a do seu amigo, coronel Aluizio Ferreira, o primeiro a governar o Território do Guaporé. Integrante da equipe de Rondon, o coronel Aluizio, nas vezes que ia lá em casa, contava deliciosas coisas sobre sua amada floresta. ¿Para o pessoal do Sul¿, dizia ele, ¿quando o nível de um rio sobe mais de cinco metros, é uma calamidade! Na Amazônia, não! Lá, a natureza só está dentro da maior normalidade se, na época das cheias, o nível dos rios sobe mais de 20 metros. Os peixes sabem disso. As árvores, também. Os índios, também. Na época das cheias, o tucunaré, por exemplo, se farta de comer coquinhos. Há árvores que passam meses com apenas a copas de fora. As ilhas dos rios somem e aparecem depois em outro lugar. As famílias constroem suas cabanas nas barrancas mais altas. É comum manterem verdadeiras hortas flutuantes, amarradas à porta da cozinha... Os rios mudam de curso. Enfim, é como se a natureza ainda estivesse se organizando.¿

Felizmente, nem Rondon, nem meu pai, nem o coronel Aluizio Ferreira viveram para assistir às agressões cometidas na construção de Tucuruí, Samuel e Balbina. São três crimes inafiançáveis. Os rastros dessa destruição ainda estão por aí, para vergonha nossa.

Lamento que nossos brilhantes dirigentes e técnicos não tenham o mesmo discernimento de seus contemporâneos japoneses! Que lição eles deram ao mundo! Mesmo tendo sofrido a tragédia das bombas de Nagasaki e Hiroshima, eles entenderam que a única forma de gerar energia para o Japão estava nas usinas nucleares. E as construíram, sem medos nem preconceitos. Hoje, 80% de sua pujante economia se sustenta graças a dezenas delas. Energia segura e não poluente.

Aqui, não. Para resolver o reconhecido esgotamento dos recursos hídricos do Sul maravilha, querem gerar energia elétrica a mais de 4 mil km de distância do mercado consumidor. Ainda que isso signifique a devastação de todo o sistema do Madeira e mesmo sabendo que o modelo escolhido para esse projeto se vai basear em inacreditáveis alagamentos, que causarão cruéis mudanças nos processos habituais da ecologia local.

Qualquer agressão ao meio ambiente da Amazônia causa estragos que não têm mais conserto. Ampliá-las, a pretexto de resolver a carência de energia do Sul, é praticar um crime brutal contra a mais rica biodiversidade do mundo.

Vai aqui o nosso protesto. Ainda é tempo. Imitem os japoneses. Construam usinas nucleares no Sul maravilha, perto dos mercados de consumo. O exemplo de Angra 1 e Angra 2 aí está, sem poluir, sem devastar, sem se preocupar com chuvas e com secas. Olhem para a França, para a Europa toda e até para a China! Leiam o relatório do Projeto Radam!

E, por favor, deixem a Amazônia em paz!