Título: O julgamento do julgamento
Autor: Coelho, Fábio Ulhoa
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2007, Espaço Aberto, p. A2
José Dirceu não quer apenas ser anistiado. Pela estratégia montada, quer muito mais: reentrar espetacularmente fortalecido na cena política brasileira. Ao buscar a anistia por meio de projeto de lei de iniciativa popular, que exige ampla mobilização de militantes do partido em busca de 1,5 milhão de assinaturas, cria-se a oportunidade para o retorno triunfal do líder petista. Ele não quer voltar na acanhada posição de alguém a quem se perdoou, mas na de injustiçado que o povo resolveu redimir.
Percebendo o extraordinário potencial de fortalecimento político do instrumento, o PTB cogitou de lançar-se a igual empreitada em favor de Roberto Jefferson, cassado pela denúncia generalizada que fez do mensalão. É provável que a iniciativa petebista não prospere, a pedido do próprio interessado, que declarou querer 'esperar o seu tempo'.
As duas hipóteses de anistia, sob o ponto de vista jurídico, são diferentes, assim como os efeitos de cada uma. Para entender a diferença cabe relembrar a distinção entre as duas sanções a que um parlamentar se expõe quando pratica crime. De um lado, aquela que qualquer outro cidadão agindo do mesmo modo também pode receber - sanção criminal. De outro, a cassação do mandato e a suspensão dos direitos políticos - sanção de direito político. Tanto José Dirceu como Roberto Jefferson não receberam nenhuma sanção criminal. Embora o petista esteja respondendo a processo-crime pelos mesmos fatos que serviram à cassação do seu mandato, houve, até agora, somente a imposição de sanções de direito político (a ele e ao petebista).
Pois bem, como não tem sentido gastar toda a energia exigida por uma propositura de iniciativa popular na busca apenas de recuperação dos direitos políticos, o projeto provavelmente visará a preservar o líder partidário também da sanção criminal.
Mas aqui há uma séria questão jurídica a assinalar relativamente à anistia de José Dirceu. Alcançando a sanção criminal, ela não poderá beneficiá-lo isoladamente. Haveria flagrante inconstitucionalidade nesse tratamento desigual. Quer dizer, se a estratégia montada para anistiar José Dirceu vingar, todos os denunciados pelo procurador-geral da República como integrantes da ¿sofisticada quadrilha criminosa¿ deverão ser igualmente beneficiados. De outro lado, como Roberto Jefferson foi o único sancionado pela prática reputada indecorosa em seu processo de cassação, sua anistia teria efeitos menos abrangentes.
Outra importante diferença diz respeito ao argumento com que cada partido promete encaminhar a luta pelas assinaturas. Nas hostes petistas, deve ser ressaltada a inexistência de provas do envolvimento do cassado nos fatos apurados na CPI do mensalão. Sem provas, a cassação teria sido um equívoco que a anistia poderia corrigir. A falange petebista falaria simplesmente na injustiça da cassação.
É falho, sob o ponto de vista jurídico, o primeiro argumento. A anistia não visa a corrigir erros técnicos de julgamento, isto é, seu objetivo não é desfazer os efeitos de uma punição que tecnicamente não deveria ter sido dada. Ao contrário, ela pressupõe que o anistiado realmente tenha praticado uma conduta que a lei reputa ilícita, delituosa. Razões de ordem pública, no entanto, recomendam que a punição, se já aplicada, tenha os seus efeitos totalmente apagados; e se ainda não, fique obstada.
Foi o que aconteceu na anistia aos presos e perseguidos políticos durante a ditadura militar. Os que sofreram pena haviam mesmo praticado os atos que a Lei de Segurança Nacional (LSN) tipificava como criminosos. Aliás, nenhum deles se envergonha de proclamar abertamente ter feito exatamente aquilo que a lei punia. Se assim é, na generalidade dos casos, não houve nenhum equívoco técnico no julgamento. Os perseguidos pela ditadura militar não foram anistiados porque haviam sido punidos incorretamente, sem provas. Foram anistiados porque fizeram o que a lei criminalizava. O que estava errado era a LSN - e por esta razão houve a anistia.
A insubsistência jurídica do argumento resulta da distinção entre julgamentos técnicos e julgamentos políticos, que devem nortear-se por suas lógicas próprias. A correção de julgamentos técnicos se aprecia tecnicamente, a adequação dos julgamentos políticos se avalia politicamente. Tecnicizar um julgamento político é tão inapropriado como politizar um julgamento técnico. Em outras palavras, julgar tecnicamente um julgamento político é despropósito igual ao de julgar politicamente um julgamento técnico. Não tem sentido criticar a decisão judicial pelo fato de ela não ser politicamente oportuna. Do mesmo modo, descabe repudiar a decisão política porque desprovida de rigor técnico.
A cassação de mandato parlamentar decorre de julgamento político e por isso prescinde das tecnicalidades típicas do julgamento judicial. Também as anistias pretendidas, vingando, provirão de exclusiva decisão política, e não técnica.
Em outros termos, a inexistência de provas robustas do envolvimento de José Dirceu não impediu sua cassação; do mesmo modo, não é apta a justificar a anistia. Uma e outra são decisões de natureza política.
O caminho é longo. Para vigorarem como lei, as proposituras de iniciativa popular, se vierem a ser apresentadas, precisam ser aprovadas nas duas Casas do Congresso e receber a sanção do chefe do Executivo. Se há 1,5 milhão de brasileiros entusiasmados com a idéia, há muitos outros torcendo para que não prospere a estratégia de perdoar os envolvidos no escândalo do mensalão. De qualquer modo, se vier a ocorrer, a anistia terá sido resultado da decisão política da maioria dos deputados e senadores e do presidente, e não de medida saneadora de qualquer impropriedade técnica na punição aplicada.