Título: Anistia requer nervos de aço
Autor: Torquato, Gaudêncio
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Nem bem a poeira assentou, após a agitada eleição do médico Arlindo Chinaglia para a presidência da Câmara, eis que o Campo Majoritário, dando vazão à índole de comandar o PT a ferro e fogo, abriu novo palco de lutas, desta feita com a intenção de resgatar os direitos políticos do ex-deputado José Dirceu. O PTB também aventou a possibilidade e até iria sair na frente com ampla mobilização nacional para conseguir 1,5 milhão de assinaturas e encaminhar ao Congresso projeto de iniciativa popular de lei para anistiar seu presidente, mas o próprio Roberto Jefferson pediu ao fiel escudeiro, deputado Campos Machado, que sustasse a campanha. O homem que agiu como um 'primeiro-ministro' da fase inicial do governo, no entanto, não vai desistir fácil de sua idéia, mesmo com os apelos do amigo Lula. Sente-se injustiçado. E considera que seu ciclo de vida política não acabou. Mas o homem que deu nome aos bois do mensalão, também conhecido pelo vozeirão com que interpreta Nervos de Aço, a metafórica canção de Lupicínio Rodrigues, acha que o momento é impróprio para mobilizar o clamor popular. No vácuo de sua absolvição caberiam os 39 parlamentares denunciados. É uma avaliação sensata.

Para início de conversa, pelo artigo 14 da Constituição, que criou os instrumentos de participação dos cidadãos no processo legislativo - plebiscito, referendo e iniciativa popular de lei -, os dois cassados detêm pleno direito de rever seus direitos políticos. Mas, convenhamos, o toque pedagógico do engajamento popular, no sentido da virtude cívica que Montesquieu descrevia como ¿espírito da democracia¿, se refere primordialmente à defesa de programas de interesse da comunidade. Sobrepor questões pessoais ou partidárias ao bem-estar coletivo, se não inverte por inteiro o sinal democrático da consulta, reforça o caráter individualista da cultura política e arrebenta as bases, já frágeis, de nossa democracia semidireta.

Com generosidade, poderemos, até, afirmar que os dois parlamentares, postos na condição de pivôs da crise que escancarou o lamaçal da corrupção, pagaram o preço de suas posições, arcando com o ônus do papel a eles atribuído na época: o fiador dos compromissos, de um lado, e o beneficiário, de outro. Furos na execução do plano teriam rompido o dique e, assim, Dirceu e Jefferson foram tragados pela avalanche, cujo poder de destruição contou com a pressão de uma opinião pública agitada pelas ondas da mídia. Depois do caos inicial, as emoções se diluíram no caldo de interrogatórios e acusações que se repetiam no espaço espetacularizado de uma comissão parlamentar de inquérito cujos resultados pífios apontam para o indelével traço da nossa política: a condição camaleônica de mudar de cor a cada estação.

O tempo é uma peça do tabuleiro parlamentar. O que explica por que cadáveres políticos ressuscitam e feridos de morte se recuperam com o bálsamo do compadrismo. Basta ver certas figuras que, faceiras, passeiam, hoje, pelos corredores do Congresso. Por que José Dirceu, ambicioso, conhecedor da alma política, deixaria de se valer de um direito que a Constituição lhe garante, apesar das considerações acima expostas? Confiando na máxima 'o tempo é o senhor da razão' (não é mesmo, senador Fernando Collor?), o ainda poderoso controlador do Campo Majoritário resiste a ser o 'bode expiatório' da crise.

Digamos que consiga obter a assinatura de 1% do eleitorado, distribuído em pelo menos cinco Estados da Federação, sendo pelo menos 0,3% dos eleitores de cada Estado e, ainda, com informações como Título de Eleitor. É razoável pensar-se no sucesso da empreitada, até porque 'é mais complicado votar em questões do que em pessoas', observa a professora Maria Victoria Benevides, em análises sobre reforma política. O nosso sistema é fundamentalmente personalizado. Ademais, a máquina azeitada do PT funcionará como funil de assinaturas e poderá até, para efeito de acelerar o processo, pedir ao TSE o apoio das urnas eletrônicas para convalidar o processo, valendo-se do preceito constitucional que abriga esta modalidade de projeto de lei. Nesse caso, as dificuldades operacionais serão drasticamente reduzidas em comparação com os dois projetos de lei de iniciativa popular apresentados, o primeiro, de 10/11/1991, criando um Fundo Nacional de Moradia Popular, e o segundo, de 10/8/1999, para combater a corrupção. Apenas o segundo foi bem-sucedido, transformando-se na Lei 9.840/99, após mais de um ano de coleta de assinaturas.

Mas a questão de fundo é de ordem política. Será uma catástrofe para o governo enfrentar uma campanha de anistia quando as energias se voltam para o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Os guerreiros de Dirceu guardarão o projeto em banho-maria, até porque ele conta com um trunfo: a absolvição no processo, no STF, movido pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, que o acusou de ser o chefe do 'organograma delituoso¿ de ¿sofisticada organização criminosa'. Se isso ocorrer, o Congresso será posto contra a parede, sob o argumento irretorquível: que moral terão os parlamentares para condenar alguém absolvido na Justiça?

A previsibilidade, porém, tem limites. Não se sabe qual será o comportamento da base aliada mais adiante. Os partidos se sentirão contemplados no segundo mandato Lula? O PAC estará de vento em popa ou emPACado? O assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, ainda poderá garantir que ele e a 'torcida do Flamengo' conseguirão a anistia de José Dirceu? Admitamos, porém, que as assinaturas cheguem às mãos de Chinaglia. Terá de acolher a idéia e submetê-la ao plenário. De que lado ficará a opinião pública? Metade do Brasil e mais a 'torcida botafoguense', de Roberto Jefferson, encartucharão armas. Veremos uma luta esganiçada sob o vozeirão: 'Há pessoas de nervos de aço sem sangue nas veias e sem coração.' Verso que não parece amedrontar um ex-aprendiz de guerrilha.