Título: 'Nossa atitude é pragmática e não há antiamericanismo'
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Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2007, Nacional, p. A10

O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, considera a parceria em negociação com os americanos para a produção de biocombustíveis um novo modelo de relacionamento entre Brasil e Estados Unidos. Para ele, é desnecessário dar prioridade às negociações para a criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), proposta dos EUA. A relação com Washington, avalia, deve no momento se basear em acertos comerciais bilaterais, até que seja possível negociar um acordo mais amplo, do Mercosul com os EUA.

'Não se deve botar energia excessiva no esforço de ressuscitar a Alca. O que precisamos é de um acordo Mercosul-Estados Unidos, o que não é simples no curto prazo', diz. 'Vamos fazer com os EUA acordos comerciais bilaterais, tendo como modelo o do etanol.' Nesta entrevista, ele também rebate as críticas do ex-embaixador Roberto Abdenur, titular até há pouco da representação brasileira em Washington, e justifica a opção preferencial da política externa do governo Lula pela aproximação com os países em desenvolvimento.

Como o sr. vê as críticas de Roberto Abdenur, que apontou a existência, no Itamaraty, de uma doutrina anti-Estados Unidos cuja influência se daria até na hora de definir as promoções dos diplomatas?

Houve a transformação de algo burocrático numa coisa política. Abdenur foi embaixador em Washington durante dois anos e oito meses, executando fiel e lealmente a política do presidente Lula, mas orientado por mim. É leviano afirmar que as promoções no Itamaraty obedeçam a critérios ideológicos. Isso é uma ofensa.

Mas há algum viés antiamericano na política externa brasileira?

Como é que uma postura antiamericana pode gerar um interesse tão grande sobre o Brasil? Seria pensar que os EUA são mulheres das peças de Nelson Rodrigues. E obviamente não é o caso. Nossa atitude é pragmática e procura defender o interesse brasileiro. Não há antiamericanismo. Muito pelo contrário. A busca de parceria não é só a discussão em torno de acordos bilaterais como o do etanol, mas a busca de um diálogo sobre o mundo. Se os EUA percebessem uma atitude antiamericana, você acha que isso ocorreria? A melhor resposta está nos fatos.

Aponte, por favor, alguns fatos.

Os contatos intensos do presidente Lula com o presidente George W. Bush, muitas vezes por nossa iniciativa e muitas vezes por iniciativa deles. Sempre de maneira produtiva e amistosa. Por exemplo, na discussão em torno do biocombustível, temos o interesse comum em criar o mercado global do etanol. Isso foi uma iniciativa brasileira. Temos também trabalhado juntos no Haiti, sobre o qual eles nos ouvem muito. Há uma relação madura e positiva em relação aos temas do continente.

Por que o Brasil não se empenhou pela consolidação da Alca?

O Brasil se empenhou. Fui a Miami e fechei um acordo que chegou a ser 98% costurado. Depois, os fundamentalistas começaram a descosturar. E não tem fundamentalista só do nosso lado não, tem do lado deles também. Ficaram duas ou três questões em aberto. Os fundamentalistas de lá não queriam o acordo ou queriam um acordo que não nos atendia, porque não era pragmático, e sim ideológico. Houve isso por um lado. Por outro, houve as crises por que passou a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), de negociações para o estabelecimento de novas regras para o comércio global. Todos nós, Brasil, EUA, Índia e União Européia, temos a noção de que a Rodada Doha é prioritária. Tentar ressuscitar a Alca será um esforço tão grande... Acho muito melhor a gente pensar em parcerias bilaterais. A do etanol, por exemplo, não depende sequer de outros países.

Quais foram as dificuldades criadas pelos fundamentalistas de lá e pelos fundamentalistas daqui?

Não sei quem são os fundamentalistas daqui, se são os da direita ou da esquerda. Às vezes, vejo muito fundamentalista na direita também. No caso de lá, a grande insistência que não permitia avançarmos era a questão da propriedade intelectual. Não aceitávamos que questões que dizem respeito a nossa capacidade interna de fazer normas fossem objeto de sanções comerciais. Não aceitamos essa vinculação da aplicação da propriedade intelectual com sanções comerciais.

A Alca é para ser esquecida?

Não estou preocupado em dizer se deve ser esquecida ou não deve ser esquecida. Acho é que não se deve botar energia excessiva no esforço de ressuscitá-la. O que precisamos é de um acordo Mercosul-Estados Unidos, o que não é simples no curto prazo. Vamos fazer com os EUA acordos comerciais bilaterais, tendo como modelo o acordo do etanol.

A inclusão da Venezuela de Hugo Chávez no Mercosul não dificulta um acordo do bloco com os EUA?

Nada é fácil na vida. Vamos por etapas. Temos que incorporar plenamente a Venezuela ao Mercosul. E ainda há cronogramas a serem estabelecidos. Temos paralelamente uma negociação em curso entre Mercosul e União Européia. Tudo isso pode criar uma base para que essas coisas, que são vistas de uma maneira mítica ou mistificada, possam ser vistas de maneira mais comercial.

O Protocolo de Ushuaia impede que países não democráticos participem do Mercosul. Isso não acabaria sendo um obstáculo à presença da Venezuela no bloco?

Não sei qual é o seu parâmetro para democracia. A democracia envolve várias coisas e, naturalmente, eleição é um fator importante. Não é o único, mas é importante: a escolha livre dos governantes. Foi por isso que lutamos tanto no Brasil por eleições diretas para presidente da República. Hoje em dia leio que o Congresso de lá é todo partidário do presidente Chávez. A oposição de lá cometeu um grande erro. Erro que o PMDB não cometeu aqui: o de não continuar. Não estou comparando o governo de Chávez com o nosso governo militar, porque lá não há o mesmo cerceamento que houve aqui. Eles deveriam participar do Congresso. Cada país tem sua variante, mas poder escolher livremente seus governantes e respeitar os direitos das minorias são dois elementos essenciais da democracia. Não me consta que na Venezuela existam presos políticos e que as pessoas estejam sendo impedidas de expressar opiniões.

Como o Brasil, no âmbito do Mercosul, lida com essas questões?

Dialogando, conversando, trocando experiências. Quando se encontram, o presidente Lula e o presidente Chávez trocam experiências. O Brasil tem quase 200 milhões de habitantes, um PIB que está entre os dez maiores do mundo, uma democracia vibrante e instituições que sobreviveram até ao regime militar. É muito mais provável que a influência do Brasil passe para outros países do que vice-versa. Essa é a melhor maneira de agir. Não é isolando e criando punições.

Em sua visita ao Brasil, o subsecretário de Estado dos EUA para Assuntos Políticos, Nicholas Burns, repassou às autoridades brasileiras o temor de interferência da Venezuela em Cuba, no caso da retirada de cena de Fidel Castro?

Eu ficaria preocupado com qualquer intervenção, inclusive de exilados cubanos. O processo de transição em Cuba, que não sei que velocidade vai ter nem como vai ocorrer, é tarefa exclusiva dos cubanos. Os amigos de Cuba podem ajudar para que haja sempre diálogo com os outros países. Os cubanos são ciosos e não gostam de ter intermediários nem sequer no diálogo com os EUA. Abrir o bloqueio econômico seria o melhor para ajudar na redemocratização, sem perder as conquistas da revolução cubana na área social e sem perder o orgulho nacional que eles têm. O que tem ocorrido é uma ajuda material da Venezuela, vendendo petróleo mais barato.

O sr. é um homem de esquerda?

Tenho identificação com a visão de aprofundar as reformas sociais, de fortalecer a independência do País, entendendo a interdependência do mundo dentro de um contexto democrático. Gosto de me sentir do lado do povo. Sinto que a política externa está deixando de ser monopólio de um pequeno grupo de pessoas, do qual eu inclusive fazia parte. Sempre me identifiquei com as causas do povo brasileiro. Sinto-me identificado com o apego à democracia, mas também com o envolvimento e a participação do povo nessa democracia.

Isso influi na política externa?

A política externa é de Estado. Há muitas coisas permanentes, mas há nuances, porque a realidade vai mudando. A política externa tem a ver com o interesse do povo. É a missão de qualquer chanceler. A leitura do que é importante para o povo brasileiro é que varia muito. Não tenho nada contra a nata da Avenida Paulista, da USP, da UFRJ. Aliás, gosto muito. Mas também gosto de ir a Feira de Santana, Cidade de Deus, Cidade Tiradentes em São Paulo. Sinto-me bem com o povo.

Há quem questione a opção do Brasil por alinhar-se à Venezuela e à Bolívia, em detrimento do Chile.

O Chile vai ser o nosso segundo maior parceiro comercial na América do Sul. O presidente Lula vai ao Chile daqui a dois meses. Agora, temos uma fronteira imensa com a Bolívia e não podemos ignorar isso. Não é questão de se aproximar de um ou de outro. Temos uma relação intensa, queiramos ou não. Temos um interesse na Venezuela muito grande. Nossas exportações para lá cresceram muito , é só olhar os números. Mas a presidente do Chile, Michelle Bachelet, é uma das líderes em que vejo grande afinidade com o presidente Lula...

Por que a opção preferencial pelo relacionamento com os países em desenvolvimento?

Esse era o diálogo que estava faltando. Ao aprofundarmos o diálogo Sul-Sul, fizemos algo que não estava ocorrendo. Isso até fortaleceu o nosso diálogo com o Norte. O exemplo das discussões na OMC é típico. O Brasil sempre teve papel importante na OMC. Estava entre os 10 ou 12 países mais importantes, mas com grande defasagem em relação aos ricos. Hoje não há uma reunião com mais de dois países de que o Brasil não participe. Em geral, passa para quatro, porque entram Brasil e Índia. O Brasil é pivô nas negociações. Isso reflete a política externa e a capacidade de articular de maneira democrática e racional os interesses dos países do Sul.

Quais as vantagens comerciais da aproximação com a África?

Há um elemento de solidariedade e tem que haver. Com a África tem que haver. Se não tivéssemos nenhuma razão comercial, mesmo assim devíamos ir lá. Mas temos razões comerciais, e boas. Nossas exportações para lá estão crescendo e outro dia o presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Roger Agnelli, concordou em como era importante investir na aproximação com a África.

Como explica o tratamento de aliado que o Brasil dá à China, que é um forte concorrente comercial?

A China é país aliado e concorrente. As duas coisas não se excluem. A China participa com o Brasil do G-20, grupo de países que se uniu para conseguir a eliminação dos subsídios agrícolas nas nações ricas. Ao mesmo tempo, a China é concorrente em outras áreas.