Título: Na estrada para o norte, o pesadelo do Túnel Salang
Autor: Mafra, Claudio
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2007, Internacional, p. A18

A estrada que liga Cabul à cidade de Mazar-i-Sharif é a vitrine da desgraça russa. Dos dois lados a visão é de tanques, canhões, e carros de combate atingidos por foguetes. Hoje, queimados e enferrujados, são objeto de brinquedo para os meninos. Pode-se imaginar os afegãos, nos altos penhascos que seguem a estrada, abatendo os russos como patos.

O percurso é muito bonito, e vai-se subindo por entre as montanhas cobertas de neves eternas até um trecho que está apinhado de caminhões e carros. Todos estão esperando para entrar em um túnel realmente inacreditável, o famoso Salang Tunel, construído a 3.400 metros de altitude, até algum tempo atrás o mais alto do mundo.

O Salang foi bloqueado pelo senhor da guerra Massud durante muitos anos, desesperado para negar aos taleban acesso ao norte do país. Entrar nesse túnel é uma experiência e tanto. Os turistas são aconselhados a não tentar. O livro-guia diz: ¿Não é uma experiência para medrosos.¿ Estou em minha segunda tentativa, já que no dia anterior o motorista de táxi, depois de tudo acertado em Cabul, recusou-se a entrar no túnel, mesmo com a minha oferta de pagá-lo em dobro. Pensava em voltar com um Nissan 4x4, mas estou mesmo em uma perua pequena e velha.

Circulei por entre os outros veículos e verifiquei que o pior carro era o meu. Bati na janela de um Hummer dos fuzileiros americanos. Uma tenente bonita baixou o vidro elétrico e eu pateticamente perguntei o que ela achava da minha intenção de entrar no túnel com aquela perua ridícula. A sua resposta - ¿Não faço a menor idéia¿ - não ajudou nada.

Meu motorista, um menino de 17 anos, assustado e quieto, ficou observando. Perguntei se estava seguro do que íamos fazer. Acrescentei que poderíamos voltar para Cabul, e que o pagaria da mesma forma. Ele já havia entrado no túnel? Em uma sociedade de machões, a resposta não poderia ser outra: sim, ele estava muito seguro, já havia entrado no túnel junto com o pai. Então fiz a pergunta definitiva: e se o carro quebrar lá dentro? ¿Não, o carro é bom, não vai quebrar.¿ Bem, nas últimas quatro horas o carro já havia parado três vezes, fervendo no meio da estrada.

Quando chegou nossa vez vi que o túnel era tudo que falavam, e mais alguma coisa. Negra escuridão, caminhões gemendo sob o peso da sua carga derrapam no gelo indo de um lado para o outro, grunhindo à frente e lançando fumaça tão grossa que gruda no corpo como se fosse uma pasta. Não existe nenhum exaustor. Você segue devagar naquele inferno, sem enxergar nada - a não ser as sombras dos caminhões -, e vai patinando, quase batendo nas paredes, caindo nos buracos de água gelada, respirando veneno puro, desesperado para que os 3.500 metros acabem logo.

E o carro quebrou. Ficamos 20 minutos parados, tontos com tanta fumaça, esperando algum caminhão nos arrebentar por trás, até que o menino conseguiu o impossível e chegamos do outro lado. Depois de tanto tempo no túnel, a luz das montanhas nevadas doem nos olhos. O panorama é deslumbrante, você procura respirar profundamente e recuperar a compostura. Depois é preciso tomar cuidado para, na euforia, não sair caminhando fora do acostamento, onde estão as minas. O Afeganistão, depois do Camboja, e da ¿terra de ninguém¿ entre as duas Coréias , é o lugar mais minado do mundo.

Para voltar esperamos horas, até termos certeza de que o carro poderia atravessar o túnel rapidamente. Nos primeiros momentos - pensando nos seus pulmões - você se arrepende, mas no outro dia acha que fez muito bem. Afinal, atravessar o Salang é uma aventura.