Título: O legado manchado de Tony Blair
Autor: Jacques, Martin
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/02/2007, Internacional, p. A21

O cheiro do governo do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, está cada vez pior. Ninguém sabe se o escândalo da venda de títulos honoríficos terminará com acusações ou com a decisão da polícia de encerrar o caso. No entanto, mesmo na segunda hipótese, a marca permanecerá; a sensação predominante de que o mandato de Blair foi manchado pela transgressão persistirá. O odor da corrupção será evidente, mesmo que a polícia não consiga fazer acusações. As chances de qualquer governo sucessor durar muito tempo agora parecem ainda menores. O legado do Novo Trabalhismo de Blair, já comprometido definitivamente pelo desastre do Iraque, corre o risco de ser definido pela malversação e pela conduta ilegal.

Não deveríamos ficar muito surpresos. O Novo Trabalhismo sempre teve um lado pouco saudável. Mas Blair esteve durante muito tempo em situação confortável. Havia a ampla maioria. O alívio com a tão esperada saída dos conservadores. Havia a presença do primeiro líder oriundo da nova classe média instruída. Havia sua rejeição militante de toda aquela besteira sobre socialismo, ideologia e velho trabalhismo (expressão que ele usava, é claro, para se referir ao Partido Trabalhista britânico). Havia seu caráter tranqüilizador, sua crença no legado do thatcherismo, seu compromisso de nunca ameaçar a ordem estabelecida.

Mas o Novo Trabalhismo abrigava, desde o nascimento, tendências profundamente corrosivas. A eleição de Blair como líder foi um golpe de Estado conduzido com a conivência do Partido Trabalhista contra si mesmo. A agremiação havia perdido toda a autoconfiança e convicção: não era de ninguém. Blair não pertencia a ele. Era um corpo alienígena num partido desmoralizado pela derrota. A natureza anômala da posição de Blair foi celebrada pela maior parte da mídia, mas continha as sementes do desastre. O partido sentiu-se totalmente dependente de Blair. Mas Blair não sentiu nenhuma obrigação de prestar contas ao grupo. O partido foi seu saco de pancadas.

E então o Novo Trabalhismo chegou ao poder. Desde o início, ele deu uma importância extraordinária à mídia e à necessidade de controlar a agenda noticiosa. Conselheiros - quase invariavelmente manipuladores da informação - foram espalhados pelos ministérios.

Personagens como o ex-ministro britânico e hoje comissário da União Européia Peter Mandelson e o ex-porta-voz de Blair Alastair Campbell, mestres da magia negra, surgiram como figuras decisivas do Novo Trabalhismo. A mensagem era tudo; a realidade, uma criada servil; e a verdade foi a primeira vítima. A manipulação da informação, é claro, desprezou o povo. Se a mídia podia ser enquadrada, o público também podia. Era a antítese da responsabilidade. O Novo Trabalhismo foi, desde o início, controlador. Isto vale para Blair e a maioria de seus assessores e conselheiros: era assim que eles faziam política.

Tudo resultava de uma crença exagerada no poder da mídia, na idéia de que o controle da agenda da mídia salvaria o país. Blair, como líder político e como produto da era da mídia e da honestidade confessional pós-anos 60, atuava na base da confiança.

Dizia o que devia ser dito. Era um de nós, podíamos confiar nele. Mas a confiança, nas mãos de um político, é uma faca de dois gumes. Havia uma sugestão de afinidade, mas também de que seria seguro deixar tudo em suas mãos. A noção de confiança de Blair é um produto típico da era da política pessoal, na qual um senso de autenticidade emocional suplantou noções mais antigas de ideologia e princípios políticos. A responsabilidade depende da confiança, não das decisões políticas; do estilo, não do conteúdo. Este era o apelo de Blair. Mas o caráter vazio e implicitamente autoritário deste apelo acabou exposto - mais grosseiramente, em seu desprezo pelo público no tema do Iraque. Na prática, contudo, isto era apenas um disfarce para a intensificação de seu poder. Paradoxalmente, a confiança pressupôs uma necessidade crescente de prestação de contas.

Blair não é imprevisível. Ele foi um defensor leal da agenda neoliberal e um partidário servil dos EUA, qualquer que fosse o presidente americano. O que poderia ser mais convencional que isso? Mas seu estilo de liderança política mostrou-se altamente incomum. Ele se voltou constantemente contra o partido que liderava, muitas vezes demonstrando um antagonismo que beirava o desprezo. Blair foi consumido por um desejo de se distanciar do partido, de não ser controlado de modo algum por ele. E isto serviu para alimentar uma crença de que ele podia fazer o que quisesse. O mesmo valeu para o uso de seus manipuladores da informação. E valeu, no fim das contas, para sua relação com o público. O desprezo por este evidenciou-se em sua crença no poder absoluto da mídia e em sua própria capacidade de controlá-la. Os controladores nunca confiam no povo e tampouco sentem-se obrigados a responder a ele.

Vistos sob esta luz, os eventos recentes que levaram ao interrogatório policial de mais de 90 pessoas, 4 delas sob custódia, não são de todo surpreendentes. Blair acreditou que podia brincar com o Partido Trabalhista (ele nem sequer se preocupou em informar seu tesoureiro sobre os empréstimos que estão no centro do atual inquérito policial) e, para a eterna vergonha do partido, escapou impune (praticamente sem nenhuma oposição, nem mesmo na questão do Iraque). E seu gabinete aparentemente acreditou que podia reabastecer os cofres do partido para a última eleição geral brincando com a lei. Seu gabinete ainda pode escapar impune, mas, na mente do público, será para sempre declarado culpado. Sempre houve algo podre no coração do Novo Trabalhismo. A investigação policial marca o momento de seu reconhecimento. É triste o fato de tantas pessoas terem sido iludidas por tanto tempo pelo Novo Trabalhismo. E o preço? O partido ainda poderá implodir e ser condenado à oposição por muitos anos.