Título: O PAC ignorou a saúde
Autor: Nogueira Júnior, José Reinaldo de Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Inicialmente recebido como iniciativa promissora, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) se revelou mais uma frágil promessa. Após a sua apresentação foi possível constatar que é formado por medidas paliativas e intenções requentadas que podem até significar alguns avanços (se implementados), mas protelam o enfrentamento das questões realmente importantes. Esta afirmação se fundamenta a partir da recusa em cortar gastos públicos, ao se propor uma comissão para discutir mudanças na Previdência que serão aplicadas apenas em 2011 e se omitir em relação à regulamentação da Emenda Constitucional nº 29 (EC 29).

A regulamentação da EC 29 é a principal pendência da política de saúde pública atual e é reivindicação fundamental do setor, mais uma vez ignorada pelo governo em seu projeto de País. O documento vincula os investimentos públicos no setor à variação do PIB nominal e determina quais são os procedimentos e serviços de saúde habilitados a receber verbas do orçamento da área.

É uma maneira de dotar o setor de recursos adequados, bem como cuidar por sua boa aplicação. A resistência do governo a regulamentar a emenda é motivada pela facilidade atual de recorrer aos cofres da 'saúde' para fazer superávit ou empregar o dinheiro em projetos alheios ao esforço de revitalizar o atendimento médico da população. Em 2006, o Executivo pretendeu utilizar cerca de R$ 1 bilhão da saúde para uma complementação ao Bolsa-Família às vésperas da eleição. Felizmente, foi barrado pela reação de alguns parlamentares. Portanto, ao adiar a solução para a questão, mantém-se a possibilidade de promover chicanas semelhantes.

O orçamento da saúde chama a atenção em números absolutos. Constitui uma tentação para a administração pública utilizá-lo como solução para os vários rombos em suas finanças. Sem a regulamentação das regras expressas na EC 29, transforma-se em caixa eletrônico sem limites à disposição do governo. No entanto, diferentemente das aparências, esses recursos expressivos são sempre insuficientes quando comparados às demandas da área.

Ter uma reserva de caixa desvinculada de obrigações com recursos exigidos pela saúde pode ser muito bom para um governo, mas é péssimo para o Estado. Mesmo a utilização bem-intencionada desses ativos resulta em prejuízos. É compreensível (e necessário) o esforço para a promoção do crescimento do País, porém é indiscutível que uma nação não alcança o desenvolvimento se for incapaz de oferecer assistência médica à sua população.

A aceleração da economia não pode ser estimulada com o sacrifício do atendimento às necessidades básicas da sociedade. Na direção oposta dessa realidade, o PAC ignorou a saúde e já é possível observar na imprensa a movimentação para um novo corte orçamentário que vai impedir o repasse de recursos para hospitais e Santas Casas. Mais esse arrocho vai significar a pá de cal para muitas entidades que não vão suportar o estrangulamento financeiro.

Recente pesquisa CNI/Ibope de avaliação do governo apontou que a população trata como principal prioridade para este mandato a revitalização da saúde. Não é para menos, já que é ela que sente na pele os problemas - e os números justificam sua preocupação. No ano passado, 255 hospitais fecharam as portas por causa das dificuldades financeiras. Toda a rede conveniada ao SUS está asfixiada. Nas Santas Casas e nos hospitais beneficentes, os problemas de débitos com fornecedores, Previdência e até funcionários são generalizados.

Existem 2.100 entidades beneficentes de saúde no Brasil, que realizam mais de 150 milhões de atendimentos ambulatoriais por ano em pacientes da rede pública. Essas unidades são responsáveis por mais de 40% das internações demandas pelo SUS e, em muitas cidades, as Santas Casas são a única alternativa de assistência gratuita. No interior de São Paulo essa situação ocorre em 56% dos municípios. Além disso, muitas dessas instituições são centros de referência em pesquisas e de avanço em procedimentos médicos.

Atualmente, o SUS repassa apenas 60% dos custos reais dos procedimentos realizados por essas instituições nos pacientes da rede pública. Um parto normal custa em média R$ 800, mas os hospitais conveniados recebem apenas R$ 317,39. Uma diária de UTI não sai por menos de R$ 720 e a tabela do SUS indica pagamento de R$ 213,71. Esse desequilíbrio, contínuo e crescente, quebrou as entidades.

É consenso entre especialistas e profissionais de saúde que apenas a regulamentação da EC 29 pode criar condições para uma correção realista da tabela do SUS, que, por sua vez, é medida fundamental para combater a penúria financeira em que se encontram os hospitais conveniados. A regulamentação deve, imediatamente, injetar R$ 10 bilhões em investimentos federais na área.

Mais um ano sem enfrentar essa questão significa novo período em que as dificuldades se vão agravar e a solução vai ficar mais longe. Neste momento, em que a realidade dos hospitais públicos é classificada como genocídio pelo governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, é hora de parar de jogar para a torcida e encarar com seriedade a situação.

É recomendável ao governo não comprometer recursos da saúde, educação e segurança em seus projetos de crescimento. Essa confusão é tão desumana - pois dignidade e cidadania são mais urgentes que desenvolvimento - quanto desonesta. Se praticar essas ligeirezas orçamentárias, o Executivo apresentará um poder de investimento fictício, que não se sustenta, para tentar atrair parceiros privados e conquistar popularidade entre os eleitores. A partir desse tipo de planejamento será capaz, no máximo, de construir um gigante com pés de barro.