Título: Aquecimento assimétrico
Autor: Canuto, Otaviano
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/02/2007, Economia, p. B2

No ano passado, durante visita de diretores-executivos do Banco Mundial à Sibéria, uma autoridade local responsável pela gestão de gigantesca área florestal surpreendeu a todos com uma pergunta. Entre um brinde e outro num jantar, indagou o ¿por que de tanta inquietação com o aquecimento global!¿

A pergunta, feita em tom de brincadeira, ilustra um dos obstáculos para o enfrentamento do problema da mudança climática, qual seja, o fato de que suas causas e conseqüências, além de cercadas de inevitável imprecisão, tendem a ser avaliadas sob prismas e interesses diversos. O relatório mais recente do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), publicado em 2 de fevereiro, reforçou a opinião científica de que o mundo está aquecendo, de que as emissões humanas de dióxido de carbono têm ampla dose de responsabilidade e de que haverá ainda substancial aquecimento ao longo do presente século. Mas se sabe que os impactos não serão geograficamente uniformes.

Tome-se, por exemplo, o impacto da subida nos níveis dos oceanos. Estima-se que o atual curso de aquecimento global deverá implicar níveis entre 1 e 3 metros mais altos neste século, podendo chegar a 5 metros, caso haja ruptura de placas glaciais na Groenlândia e na Antártica Ocidental. Uma pesquisa recém-realizada pelo Banco Mundial sobre seu impacto em 84 países em desenvolvimento trouxe resultados alarmantes.(*) Centenas de milhões de pessoas terão provavelmente de se deslocar, sofrendo danos econômicos e ecológicos. No caso de alguns países - Vietnã, Egito, Bahamas, etc. -, as conseqüências poderão ser catastróficas. Na China, embora o impacto deva ser pequeno em termos relativos, será enorme em termos absolutos.

A heterogeneidade geográfica também ocorrerá no caso dos outros efeitos negativos da mudança climática, tais como maior freqüência de ondas de calor, maior intensidade nas tempestades, enchentes e secas, difusão mais rápida de certas doenças e perda de biodiversidade. Embora todos no planeta devam sofrer com o deslocamento de contingentes, perda de infra-estrutura, etc., o fato de que a área agriculturável em algumas regiões mais frias poderá aumentar ilustra a assimetria nos efeitos.

Há também a assimetria entre causas e efeitos. As causas são globais: como os gases estufa se misturam de modo uniforme na atmosfera, de um ponto de vista ambiental não importa de onde se originam no planeta as emissões. Isso em si já gera um ¿problema de ação coletiva¿, vale dizer, na ausência de algum mecanismo que inclua todo mundo fazendo algo em simultâneo, a tentação de deixar que outros incorram no custo de cortar emissões de carbono tende a predominar, levando ao fracasso coletivo. Para piorar, como as conseqüências não são uniformes, a disposição a incorrer em tais custos de mitigação pode não guardar proporcionalidade com as responsabilidades nas causas. Será necessária muita força moral para fazer prevalecer o princípio de ¿justiça social planetária¿ no esforço diplomático global, com ônus refletindo responsabilidades, em lugar do simples cálculo de custos e benefícios.

Nesta semana, realizou-se em Washington, sobre o tema, um fórum com a presença de parlamentares dos países do G-8 e outros com peso sistêmico (Brasil, China, Índia, México, África do Sul, Austrália e Coréia). No que diz respeito ao caminho a ser trilhado individualmente pelos países para a redução de suas emissões de carbono, foi fácil o consenso de que não há ¿soluções mágicas¿ e, na verdade, teremos de trabalhar com um portfólio diversificado de enfoques. Mas as discussões sobre a distribuição dos ônus dos ajustes mostraram que ainda temos muito chão a percorrer.

De qualquer modo, com maior ou menor sucesso na ação coletiva de diminuição nas emissões de carbono, melhor será adaptar-se ao aparentemente inevitável aquecimento global próximo. No caso do Brasil, vale por exemplo avaliar os danos - e as necessidades de deslocamentos geográficos e adaptação - que o setor agrícola poderá encarar caso as temperaturas continuem a subir, como os trabalhos que o Cepagri/Unicamp, Embrapa e outros vêm fazendo. Afinal, lá na Sibéria meu anfitrião deve ainda continuar animado.

(*) Susmita Dasgupta et alli, The impact of sea level rise on developing countries: a comparative analysis, wps4136, fevereiro 2007 (http://econ.worldbank.org).