Título: O suplício do pequeno João
Autor: Di Franco, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

O suplício do pequeno João Hélio, arrastado pelo chão pavimentado com a violência perversa que corrói a sociedade brasileira, produziu horror, discursos indignados e um certo clima maniqueísta.

Alguns, dominados por compreensível revolta, desejam a imediata redução da maioridade penal. Apostam na repressão como forma de defesa social. Outros, apoiados numa distorcida visão dos direitos humanos, transferem para a sociedade toda a culpa pela onda de crueldade que tem marcado as ações das gangues juvenis. O chamado pecado social acaba apagando qualquer vestígio de responsabilidade individual.

Reduzir a maioridade penal ou aumentar exponencialmente as penas são propostas que emergem com a força incontida da revolta e da dor. Funcionarão? Penso que não. Representarão, sim, uma demanda fortíssima para um sistema penitenciário que não se agüenta em pé. Ademais, o problema não é duplicar ou triplicar os anos de encarceramento. Uma das causas da violência é a certeza da impunidade. O criminoso sabe que a probabilidade de um longo período de reclusão só existe na letra morta da lei. O Brasil, sabemos todos, não padece de anemia legal. O nosso drama é a falta de eficácia na aplicação da lei. A Itália, nação também latina e emocional, soube combater suas máfias com notável sucesso. E não falemos nos países anglo-saxões. Lá fora também existe corrupção, só que as autoridades põem os ladrões na cadeia.

O que a sociedade assiste, em todos os níveis, a começar pelos patamares mais altos, é ao jogo do faz-de-conta e ao triunfo da mais obscena impunidade. O teatro das CPIs, a desenvoltura dos sanguessugas, a reeleição de inúmeros corruptos, a novela inacabada da origem do dinheiro do dossiê e tantas outras bofetadas na cidadania compõem o ambiente perfeito para a institucionalização do crime. A fibra moral da sociedade vai se desfazendo numa velocidade assustadora. Mas há, estou convencido, causas ideológicas mais profundas para o eclipse da ética e para a explosão das ações anti-sociais. O relativismo ético, a ausência de limites e a crise da família estão na raiz da patologia social.

De fato, quantas correntes ideológicas, quantos modismos intelectuais vivemos nas últimas décadas? A busca da verdade é freqüentemente etiquetada como fundamentalismo, ao passo que o relativismo, isto é, o deixar-se levar ao sabor da última novidade, aparece como a única atitude à altura dos tempos que correm. Vai-se constituindo a intolerância do relativismo que não reconhece nada como definitivo e que usa como critério apenas o próprio eu. Porém, como lembra Bento XVI, do alto de sua inequívoca autoridade intelectual, 'a renúncia à verdade não soluciona nada, mas ao contrário: conduz à ditadura da arbitrariedade'. O relativismo está, de fato, na origem do enfraquecimento da democracia e nas agressões cada vez brutais aos direitos humanos.

Há no cerne da crise uma profunda raiz ideológica. Na verdade, as bases racionais da modernidade foram minadas pelo pensamento de Nietzsche. O pai do relativismo moderno sempre argumentou que o homem era um animal criador de valores e que a complexa 'linguagem do bem e do mal' manifestada pelas diferentes culturas era puro produto da razão. Rompeu-se, assim, o nexo de união entre vontade e razão. Dessa forma, as pessoas passaram, no seu comportamento prático, a confundir gosto com vontade, sem conseguir captar as profundas diferenças existentes entre ambos. Por isso, cada vez mais o gosto, o capricho, o prazer (incluindo as suas manifestações mórbidas e doentias) passaram a impor sua força cega. Um dos traços comportamentais que marcam a decomposição ética da sociedade é, efetivamente, o desaparecimento da noção da existência de relação entre causa e efeito. A responsabilidade, conseqüência direta e lógica dos atos humanos, simplesmente desapareceu. O fim justifica os meios. Sempre. Trata-se da conseqüência lógica do raciocínio construído de costas para a verdade. O político não tem limites na busca do poder. O burocrata avança no dinheiro público. E o ladrão de carro não pára diante do corpo dilacerado do pequeno João. É terrível, mas é assim.

A desestruturação da família está, também, no miolo do caos social. Não é difícil imaginar em que ambiente familiar terão crescido os integrantes de gangues que se divertem matando crianças e enlutando a Nação. Um amigo psiquiatra, arguto e competente, dizia-me que algumas doenças psíquicas têm melhor prognóstico terapêutico nos países do Terceiro Mundo. 'Aqui', afirmava, 'ainda existem laços familiares.' O Primeiro Mundo, rico e consumista, padece de subdesenvolvimento afetivo. A realidade, infelizmente, não confirma o otimismo do meu amigo. Estamos perdendo afetividade. Aceleradamente.

A crescente violência juvenil exige uma harmoniosa combinação de firmeza repressiva e perseverante aposta na recuperação. É preciso enfrentar a curto prazo o problema da delinqüência. Soluções técnicas, e não demagógicas, devem ser discutidas no âmbito do Congresso Nacional. Mas sem uma profunda renovação moral da sociedade é arar no mar.

As análises dos especialistas esgrimem inúmeros argumentos. Fala-se de tudo, menos das raízes profundas da crise: o relativismo ético, a ausência de limites e a ruptura da família tradicional. Mas o nó esta aí. Se não tivermos a coragem e a firmeza de desatá-lo, assistiremos a uma espiral de crueldade sem precedentes. O horror dos lares destruídos pelo ódio não está nas telas dos cinemas. Está batendo às portas das casas de um Brasil que precisa recuperar a cordialidade captada pela poderosa lente de Sérgio Buarque de Holanda no seu memorável Raízes do Brasil.