Título: Pequim tenta conter separatismo
Autor: Wagner, Wieland
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/02/2007, Internacional, p. A12

Mao Tsé-tung desafia o vento gelado que desce das Montanhas Pamir até a cidade de Kashgar. Pequim fica a mundos de distância deste ponto da histórica Rota da Seda, não longe do Tajiquistão e do Quirguistão. Talvez seja por isso que o presidente Mao precisa de uma base tão alta para sua estátua, 24 metros acima do chão na Praça do Povo. Mas Mao está sozinho - praticamente não há ninguém na praça.

É hora de rezar. A poucos quarteirões dali, os moradores caminham para a Mesquita Id-Kah, o maior templo muçulmano da região autônoma de Xinjiang, que abriga a minoria uigur no noroeste da China. Os fiéis cobrem o rosto com os turbantes de pele. O frio é cortante, mas a atitude também serve para esconder suas identidades. Muitos têm medo de ser reconhecidos.

Os muçulmanos são maioria em Kashgar, criando um clima de oásis árabe nesta cidade antiga à margem da Bacia de Tarim. Uigures, quirguizes e tajiques trazem suas tâmaras, nozes e romãs para o mercado em carroças de burro. O ar não cheira a pato de Pequim, mas sim a carneiro assado e pão sírio.

Mas um véu de suspeita paira sobre a região. Ao contrário do que ocorre em outras partes do centro da Ásia, o muezim de Kashgar não pode usar alto-falantes no minarete para chamar os fiéis à oração. Sua voz sai abafada do interior da mesquita. Os funcionários públicos são proibidos de participar das orações muçulmanas - uma prova dos temores do governo ateísta chinês de que o Islã se transforme no núcleo de um movimento separatista.

Em janeiro, a polícia chinesa atacou uma base no oeste de Xinjiang usada por combatentes do Movimento Islâmico do Turquestão Oriental (Etim) - acusado de ligações com a rede terrorista Al-Qaeda. Foi a batalha mais sangrenta em uma década entre forças do governo chinês e combatentes da resistência uigur. Um policial foi morto - e Pequim o celebrou como um mártir da revolução. A polícia matou 18 supostos terroristas e prendeu 17.

Desde então, aviões e helicópteros militares de transporte aterrissam regularmente no aeroporto de Kashgar. A China está concentrando forças em suas fronteiras montanhosas. Os vizinhos Quirguistão, Tajiquistão, Afeganistão e Paquistão são vistos como os principais esconderijos dos islâmicos da região. Desde a batalha na base do Etim, qualquer pessoa em Kashgar que não tenha documento de identidade é considerada suspeita. A polícia revista veículos nas ruas principais. Forças de segurança, de farda ou à paisana, escondem-se pela cidade.

De certo modo, a vigilância reforçada atrapalha os objetivos do governo chinês na região, onde são bem-vindas novas instalações comerciais, industriais ou residenciais - qualquer construção que tome o lugar das tradicionais casas de barro da cidade. Pequim está investindo bilhões de yuans na criação de uma Rota da Seda moderna nesta região fronteiriça, com oleodutos, ferrovias e estradas. A China planeja usar a nova infra-estrutura para trazer petróleo e gás natural do centro da Ásia e exportar seus eletrônicos e têxteis. Os estrategistas de Pequim apostam na nova riqueza para pacificar a agitada região de Xinjiang. Mas o recente massacre nas montanhas pode espantar os investidores, num momento em que a China trava sua própria guerra contra terroristas islâmicos.

O presidente chinês, Hu Jintao, diz há tempos que seu país é uma ¿vítima do terrorismo¿. Mas ele se refere principalmente a forças que lutam por independência ou maior autonomia no leste do país. O governo acusa a dissidente uigur Rabiya Kadeer de ¿atividades terroristas violentas¿. Há dois anos, Pequim forçou a proeminente empresária local a emigrar para os EUA e impôs penas de prisão a seus filhos em Xinjiang por suposta evasão fiscal. Ao citar um internauta indignado que chamou Kadeer de ¿monstro separatista¿, o oficial Diário da China expressou um dos maiores temores de Pequim: o de que a dissidente, eleita presidente do Congresso Mundial Uigur em 2006, ganhe o Nobel da Paz.

A ¿guerra ao terror¿ também é uma fachada conveniente para o governo chinês. Em 2001, Pequim usou suas preocupações com supostas atividades terroristas como razão para a criação da Organização de Cooperação de Xangai, que inclui Rússia, Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão. Os perigos do terrorismo também foram usados para justificar exercícios militares com os russos em 2005. Três anos antes, a China obteve apoio dos EUA em sua campanha para fazer com que a ONU classificasse o movimento islâmico de independência Etim como organização terrorista. Na verdade, pouco se sabe sobre os objetivos do Etim. E Pequim não ofereceu provas dos supostos laços do grupo com a Al-Qaeda.

Apesar dos sucessos, o governo chinês continua muito preocupado, temendo repetições dos distúrbios sangrentos das últimas décadas em Xinjiang. Segundo estatísticas oficiais, as atividades do movimento de resistência deixaram 162 mortos e 400 feridos entre 1990 e 2001. Aparentemente para prevenir ataques, a China impõe restrições ao transporte de líquidos por passageiros em aviões desde 2003 - bem antes da adoção de regras similares na Europa e nos EUA. Com a aproximação das Olimpíadas de 2008, a segurança já foi reforçada na capital e arredores.

A estratégia da China de usar as bênçãos do capitalismo como arma no combate ao terrorismo tende a prejudicar os uigures. Cada vez mais chineses étnicos migram para Xinjiang; sua fatia da população cresceu pelo menos 40% desde 1949.

A mudança da composição étnica regional amplia o abismo entre ricos e pobres - e o declínio social tende a afetar primeiro os uigures, como o vendedor de têxteis Mohammed. ¿Hoje, são os chineses que dirigem os negócios aqui¿, afirma ele, com revolta. ¿Eles estão roubando nosso sustento.¿

Além disso, depois que Xinjiang se transformou numa virtual base militar, até o mais pacífico dos uigures é dissuadido de protestar nas ruas. Dezenas de milhares de soldados chineses foram estacionados, por exemplo, em Shule, cidade-quartel perto de Kashgar.

Mas o combate não é a única razão da presença dos soldados. Muitos foram enviados à região também para desenvolver suas próprias fazendas e fábricas. Segundo um soldado, assim que se deparam com distúrbios, eles simplesmente vestem a farda da Polícia do Povo.

Como se isso não bastasse, o governo central também controla os relógios em Xinjiang. Embora a capital fique a quase 3 mil km de distância, a região opera no horário de Pequim.

Apesar da determinação oficial, os relógios da mesquita de Kashgar são acertados, em silencioso protesto, pelo horário local. São duas horas mais cedo que o horário de Pequim - exatamente como a natureza faria em Xinjiang.