Título: A lógica da impunidade
Autor: Rosenfield, Denis Lerrer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2007, Espaço Aberto, p. A2
O Brasil chegou a tal nível de descalabro que se torna necessário destacar que a tarefa primeira do Estado é a segurança. Verdade tão banal que chega a ser defendida por todos os filósofos políticos, independentemente de suas respectivas orientações. No entanto, algo tão banal, no nosso país, é objeto de discussões, debates e, sobretudo, de tergiversações, resultantes de políticos e representantes do Estado em seus distintos níveis e Poderes que não querem, nem pretendem, assumir as suas próprias responsabilidades. Em troca, temos a banalização do mal, que chega às raias do absurdo com uma criança sendo arrastada por um carro dirigido por meliantes, chacoalhada feito um boneco e morta por um bando de assassinos.
O cinismo é tão grande que os ditos sensatos declaram que nenhuma medida deve ser tomada sob forte emoção. Cabe, porém, a pergunta: se não é a forte emoção que provoca iniciativas salutares como a da redução da maioridade penal, proposta pelo senador Antônio Carlos Magalhães, quando será ela tomada? Esse filme já foi visto. Quando dos ataques do PCC em São Paulo, ou de outros esquadrões do crime em outras cidades brasileiras, o argumento foi o mesmo. Aguardemos a poeira baixar. O que foi feito depois? Nada, rigorosamente nada. A impunidade só piorou. Infelizmente, o que aconteceu com essa criança faz parte de uma lógica, a lógica da impunidade, que começa na corrupção de Brasília e se estende para todos os outros setores da vida nacional. Até quando? Comecemos por verdades elementares. As funções primeiras do Estado são três: a preservação da vida, a conservação dos movimentos do corpo e a proteção da propriedade.
A vida - Se as pessoas vivem numa instituição chamada Estado, é para que ela preserve aquilo que todos consideram como seu bem essencial, a própria vida, que deve ser preservada acima de quaisquer circunstâncias. Se os membros dessa instituição, chamados cidadãos, pagam impostos, é para que ela assegure a sua própria segurança, sob a forma da paz pública. Isso significa que as pessoas deveriam poder dormir sossegadas, sem medo de serem ameaçadas por alguém que invada a sua moradia ou tome alguém como um corpo morto/vivo sendo arrastado pelas ruas de uma cidade. Diante de uma situação deste tipo, de barbárie, o nosso presidente da República teria declarado que não apoiaria o projeto em pauta no Senado, porque alteraria o Estatuto da Criança e do Adolescente. Segundo o que foi noticiado, ele teria declarado que não se pode ¿desproteger os adolescentes¿. Realmente, não dá para entender. Desprotegidos estão as crianças e os adolescentes que não podem mais sair pelas ruas do Brasil, atacados inclusive por adolescentes que, por serem menores, podem assassinar impunemente. No máximo, ficam até três anos numa instituição especial, voltando depois para as ruas como se nada tivesse acontecido. Até o argumento adicional de que um presídio normal os pioraria carece de qualquer fundamento. Piores não poderiam ficar! Já o são. Talvez o presidente devesse ter dito que procura proteger adolescentes criminosos. Haveria um mínimo de coerência.
O corpo - Movimentar-se pelas ruas de uma cidade, ir ao trabalho, namorar, passear, aproveitar o lazer são atividades inerentes às pessoas que vivem sob a proteção estatal. Ou deveriam ser. O direito de ir-e-vir, por exemplo, se origina na proteção do corpo que se movimenta livremente em busca daquilo que lhe parece ser um bem, na busca do prazer e no evitar a dor. Isto implica que a pessoa tem o direito natural de buscar a realização dos seus desejos mediante os bens que lhe apetecem, sem que ninguém deva intervir nesse processo, seguindo as leis e normas que regram o convívio humano. Ora, o que acontece na vida cotidiana? As pessoas têm medo do que pode acontecer com o seu corpo por causa de assaltos, roubos, seqüestros e outras atividades criminosas que espreitam o seu bem-estar e os seus movimentos a qualquer instante. O Estado não consegue assumir essa que seria uma de suas funções básicas. Cabe, então, a pergunta: por que deveriam pagar impostos, se a sua retribuição principal não lhes é assegurada?
A propriedade - A defesa da propriedade assegura que as pessoas possam conservar a sua própria vida, usufruir seus bens, proteger a vida dos seus e, sobretudo, mediante contratos assegurados pelo Estado, propiciar o crescimento econômico e o desenvolvimento social. As pessoas só investem em si e na ampliação do seu patrimônio, em interação com os outros, se relações impessoais, chamadas de mercado, são asseguradas por leis e instituições. Trata-se tanto da vida individual, daquilo que uma pessoa veste, quanto do seu esforço por meio do seu trabalho e dos seus investimentos. O que não pode acontecer é que uma pessoa tenha medo de investir por temor de que um contrato não seja honrado. O que não pode ocorrer é que uma pessoa desconfie do seu Estado, visto ele estar apenas preocupado em preservar os interesses de um setor da sociedade ou, na maior parte das vezes, dos grupos corporativos incrustados no próprio aparelho estatal.
O cidadão não pode ficar exposto às mais diferentes formas de insegurança e usurpação, como as que se concretizam no roubo, na malversação do dinheiro público, na corrupção e, principalmente, na impunidade. Se propriedades são invadidas nas cidades sem que os governos assumam as suas responsabilidades, é porque há algo de extremamente inquietante acontecendo. Se o próprio governo federal termina financiando indiretamente organizações que invadem terras no campo, acobertando-as legalmente, é porque não sabe ser autoridade pública, a lei deixando de ter valor. Se a lógica da impunidade em todos os setores da vida nacional prevalece, não há por que se chocar com a banalização do mal que estamos vivendo. E, no entanto, continuamos a ficar chocados, pois a indignação ainda se faz presente. Falta ela, porém, se manifestar publicamente!