Título: Lei de saneamento vai travar o setor
Autor: Oliveira, Ribamar
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2007, Economia, p. B2
A lei do saneamento básico entrará em vigor na próxima quinta-feira e, ao contrário da expectativa geral, ela será mais um obstáculo para que os investimentos no setor deslanchem de imediato. Para usar um termo do agrado do presidente Lula, a lei vai 'travar' o setor e adiar os investimentos. Se a legislação não for alterada, um dos pilares do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) estará comprometido.
Um alerta neste sentido já foi feito ao governo, há cerca de 15 dias, pela Associação Brasileira das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe). Representantes de 17 dessas empresas, responsáveis pela execução da maior parte dos serviços públicos de saneamento no Brasil, estiveram reunidos com técnicos do Ministério das Cidades e da Caixa Econômica Federal (CEF) para expor as suas preocupações. A principal dificuldade apontada é que a lei de saneamento não estipula prazo de transição para a entrada em vigor das novas regras.
Para que os novos contratos de prestação dos serviços de água e esgoto tenham validade, de acordo com a lei, é preciso que o município ou Estado tenha uma política de saneamento, que elabore o seu plano de saneamento e que defina as normas de regulação, incluindo a designação da entidade que vai regular e fiscalizar os serviços. Essas condições estão estabelecidas nos artigos nove e onze da lei de saneamento.
Isto significa, como explicou o professor de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carlos Ary Sundfeld, que nenhuma nova outorga de serviço público de saneamento poderá ser feita pelo titular do serviço (Estado ou município) sem que as exigências da lei sejam previamente cumpridas. Ocorre que nenhum município ou Estado brasileiro possui esses dispositivos legais, nos termos definidos pela nova legislação de saneamento.
O titular do serviço terá, portanto, que elaborar, imediatamente, uma proposta de política de saneamento básico e definir um projeto de saneamento que estabeleça metas de expansão dos serviços. Com base nessas metas é que ele estimará os investimentos que exigirá do concessionário dos serviços e definirá as tarifas a serem cobradas dos cidadãos. 'Esse plano é algo a ser inventado, pois não há experiência em que se possa basear', observou Sundfeld, em conversa com este colunista. 'A política e o plano terão que ser elaborados tecnicamente e depois negociados politicamente, pois precisarão ser aprovados pelos respectivos legislativos', explicou.
Recapitulando: primeiro, o titular do serviço terá que designar uma equipe de técnicos para elaborar a política e o plano. Depois, encaminhará um projeto de lei à respectiva Câmara municipal ou à respectiva Assembléia Legislativa para que a política e o plano sejam aprovados.
Além disso, a regulação dos serviços, nos termos definidos na lei do saneamento básico, também terá que ser objeto de projeto de lei. O governos estaduais e municipais deverão, ainda, realizar concursos públicos para a escolha dos funcionários que preencherão os cargos das entidades de regulação. 'Tudo isso leva tempo', ponderou Sundfeld. Ele acredita que, na melhor das hipóteses, o processo todo levará dois anos. 'O resultado das determinações legais é que não haverá nova outorga durante dois anos', estimou.
A situação torna-se ainda mais dramática porque o artigo décimo da lei proíbe a prestação de serviços de saneamento básico sem a celebração de contrato. A lei veda expressamente o uso de convênios, termos de parcerias ou outros instrumentos de natureza precária. O assessor técnico da Aesbe, Marcos Thadeu Abicalil, informou a este colunista que pelo menos 900 contratos estão vencendo no curto prazo ou estão em situação precária, ou seja, terão que ser renovados.
A renovação significará novo contrato, uma nova outorga, que terá que cumprir as exigências da lei de saneamento. Os contratos que estão vencendo ou que são precários foram feitos com as empresas estatuais de saneamento, em sua maioria. Para essas empresas, não há hipótese de renová-los sem cumprir as novas regras. 'Ninguém vai querer fazer um contrato que nasce com uma insegurança jurídica dessa ordem', disse Abicalil. 'A Caixa Econômica Federal também não vai querer financiar uma concessionária que tenha problemas dessa natureza', acrescentou.
O mais estranho da situação é que o parecer do deputado Júlio Lopes (PP-RJ), relator da lei do saneamento básico no Congresso, tinha prazos de transição de dois e três anos para a entrada em vigor de algumas regras da lei. Os prazos foram retirados quando o parecer de Lopes foi submetido à análise da Casa Civil, de acordo com parlamentares que participaram das negociações no Congresso. Ninguém sabe até agora as razões que levaram o governo a retirar os prazos.
O professor Sundfeld e Abicalil estão convencidos de que a lei de saneamento terá que ser modificada para que prazos de transição sejam estipulados. 'Se não houver outra lei que corrija estes defeitos da lei de saneamento teremos muitos conflitos', advertiu Sundfeld. 'O risco de confusão é brutal', observou. 'Se não mudar a lei, estipulando prazos de transição, o PAC vai empacar', disse Abicalil.
Sundfeld acredita que, o mais razoável, seria que o problema fosse corrigido por meio de uma medida provisória assinada pelo presidente Lula. Ele advertiu para o fato de que a tramitação de um projeto de lei poderá ser demorada. Abicalil sugeriu que o assunto seja colocado num projeto de conversão de uma das medidas provisórias do PAC que já tramitam no Congresso.
O forte investimento em saneamento básico é um dos principais aspectos do PAC. Para os próximos dois anos, o governo anunciou a ampliação em R$ 6 bilhões do limite para contratação de operações de créditos por parte dos Estados e municípios para novas ações na área de saneamento ambiental. Além disso, o fundo de investimento em infra-estrutura, com recursos do FGTS, vai destinar R$ 1,5 bilhão para o setor. Se os defeitos da lei de saneamento não forem corrigidos, esses recursos ficarão parados nos próximos dois anos.
O secretário interino de saneamento do Ministério das Cidades, Sérgio Gonçalves, disse que a preocupação das empresas de saneamento ¿é razoável e justa¿. Para ele, 'a ausência de prazo de transição deixa realmente a situação preocupante'. Segundo Gonçalves, o governo criará, nos próximos dias, um grupo de trabalho para tentar encontrar saídas legais para a situação.