Título: Sabedorias brasileiras
Autor: Sardenberg, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/02/2007, Economia, p. B2

O regime de metas de inflação com banco central independente é um sucesso mundo afora. Há diversos estudos mostrando que essa modalidade de política monetária, bastante recente, é uma das explicações para o momento positivo por que passa a economia mundial, com forte crescimento, expansão generalizada e inflação muito baixa, com taxas de juros também baixas. O mercado sabe que os bancos centrais têm autoridade, independência e capacidade técnica para manter a inflação baixa - e isso, como dizem os economistas, coordena as expectativas.

Aliás, também há no Brasil hoje uma forte convergência de expectativas, indicada pelo Relatório de Mercado do Banco Central (BC) - veja no site www.bcb.gov.br -, de que a inflação deve seguir baixa e dentro da meta. Para este ano e o próximo a meta é de 4,5%, com margem de dois pontos para cima e para baixo, sempre considerando o IPCA, índice do IBGE. Portanto, entre 2,5% e 6,5% está na meta.

O problema é que o BC brasileiro não é institucionalmente independente. Ou seja, o presidente Lula tem o poder de hoje mesmo demitir toda a diretoria, nomear novos diretores e mandar que eles derrubem a taxa de juros para 5% ao ano. O presidente Bush não tem esse poder, nem o primeiro-ministro Tony Blair, nem todos os chefes de governo da União Européia. Em todos esses casos, as diretorias dos bancos centrais têm mandatos definidos, alguns de dez anos, e o processo de fixação da taxa de juros segue ritos legais. Nos países mais importantes, o sistema é o mesmo: o governo, não o BC, fixa a meta de inflação. O BC é encarregado de cumpri-la, usando para isso a taxa básica de juros. Se a inflação está em alta, escapando da meta, sobem os juros. E inversamente. O ideal é encontrar a taxa de juros de equilíbrio, aquela que garante o crescimento do país com inflação estável na meta.

Em toda parte os BCs trabalham com modelos teóricos para calcular a inflação e, sobretudo, para fazer os prognósticos, os cenários que vão determinar a ação de política monetária. Óbvio, não? O BC tem de colocar a inflação futura na meta, daí a necessidade de desenhar cenários acurados. As instituições financeiras do país, as consultorias, os institutos de economia públicos e privados, departamentos de faculdades - todo esse pessoal trabalha com os mesmos modelos do BC e faz seus cenários. Tudo é enviado ao BC, que publica o resumo do que se considera o ¿cenário do mercado¿. Quando esse cenário bate com o do BC, as expectativas estão coordenadas e ancoradas, passo essencial para a inflação ficar na meta.

No Brasil, o BC coloca toda segunda-feira no seu site o Relatório de Mercado.

Em todo o mundo, os BCs, por intermédio de seus Comitês de Política Monetária, fazem reuniões regulares, com o mesmo ritual: um dia para estudos, outro para decidir sobre a taxa básica de juros. A decisão é divulgada por um comunicado. Uma semana depois se divulga a ata da reunião e, trimestralmente, o Relatório de Inflação, amplo documento no qual se dá uma geral na economia e se comenta a visão do BC e do mercado.

Aqui, no velho estilo brasileiro, é tudo mais ou menos. O BC segue com competência todo aquele ritual. Mas é independente mesmo? Na prática, o BC tem atuado de modo independente, mas por concessão dos presidentes, primeiro Fernando Henrique Cardoso, que introduziu o sistema de metas de inflação em 1999, depois mantido por Lula. Uma modificação importante feita por Lula foi dar status de ministro ao presidente do BC.

Mas a autonomia formal, a independência legal do BC, não passou. Projetos de lei foram preparados, um deles chegou a ser enviado ao Congresso, mas acabou morto por decisão do PT, certamente, mas de muitos outros partidos, incluindo o PSDB. As lideranças econômicas e os políticos brasileiros, independentemente de partidos, ainda acham que não vale a pena abrir mão do poder de controlar o BC, de entregá-lo aos tecnocratas, como se diz.

Isso quer dizer o seguinte: alimentam a esperança de poder mandar na taxa de juros para promover crescimento imediato. Mais que isso: acham que esse regime de metas de inflação é bobagem, figuração.

Na última sexta-feira, o Estado divulgou documento reservado da Fiesp no qual se afirma que a última decisão do BC - de reduzir a taxa básica de juros em 0,25 ponto - foi uma espécie de birra. Algo assim: está todo mundo querendo que os juros caiam mais depressa? Pois vamos fazer devagar para mostrar quem manda aqui.

O governador de São Paulo, José Serra, simplesmente decretou que o BC comete um ¿erro econômico¿. Exatamente como o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, para quem o BC ¿está bobeando¿. E o presidente Lula, segundo assessores, comenta que de agora em diante vai vigiar de perto os movimentos do BC.

Estão todos no mesmo lado, daqueles que acreditam que a taxa de juros tem de ser e pode ser controlada politicamente. No mundo todo, a experiência e a teoria mostram que toda interferência política nos juros (e na taxa de inflação) termina em desastre. Mais ainda, há inúmeros estudos mostrando como a autonomia legal do BC levou a uma queda na taxa de juros de equilíbrio.

Em resumo, o regime de metas de inflação com BC independente é o maior sucesso mundial. Nos meios econômicos e acadêmicos internacionais, o BC brasileiro é um case de sucesso, por ter derrubado uma inflação que chegou a rodar a 20% ao ano para o nível atual, entre 3% e 4%. As taxas de juros, nominais e reais, são as mais baixas em décadas e continuam caindo. Pelo cenário de mercado, ao final deste ano a taxa real de juros estará nos 7%, nível que nem os mais otimistas esperavam não faz muito tempo.

Mas o pessoal continua achando que o BC é um bando de idiotas. Como se sabe, o Brasil é diferente. Eles lá nos EUA, na Europa, na Ásia não sabem como fazer um país crescer forte com inflação no chão e juros baixos.

Em tempo: claro que se podem discutir as decisões do BC, coisa que o mercado e o próprio banco fazem o tempo todo. Há ciência e muito de arte na fixação da taxa de juros e não raro os membros do BC divergem entre si. Mas discutem se a taxa deve ser 13% ou 12,5%, dentro dos parâmetros do regime. Agora, dizer que é tudo bobagem e que basta trocar a diretoria do BC, reduzir juros e - abracadabra! - o Brasil cresce é simplesmente querer fugir dos problemas difíceis, como a asfixiante carga tributária.