Título: Leniência letal
Autor: Nalini, José Renato
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

É urgente a revisão dos prazos concedidos para eliminação da queimada de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo. Inexplicável ter-se aceitado o termo final do ano 2031 para a definitiva cessação dessa prática nefasta. A pressa se impõe porque o delírio causado pela divulgação de que o etanol será adotado pelos EUA também acelerou a conversão do nosso Estado num imenso canavial. Mais cana, mais queima. Mais queimadas, mais problemas de saúde e menos ambiente sadio.

Entre a euforia dos que só pensam na balança comercial e a melancolia extraível do relatório da ONU a dar conta da trágica situação ambiental, prevalecerá o primeiro sentimento. É mais conforme com o 'jogo do contente' que disfarça as mazelas nacionais.

É desproporcional a luta das vozes isoladas e não ouvidas que alertam para os perigos da contaminação ambiental e da alteração da biosfera em cotejo com a teimosia dos 'desenvolvimentistas'. A lucidez de quantos não vêem antagonismo entre preservação e desenvolvimento sustentável é minoria. Prevalecem os que apregoam o crescimento da economia a qualquer custo, aí incluídas a destruição da biodiversidade e a extinção das florestas.

Ainda é crível afirmar que a poluição, a destruição da mata, a morte precoce e a queda do nível da saúde das populações envolvidas é o preço inevitável a pagar pelo progresso? Há um peso específico até para a argumentação jurídica dos desenvolvimentistas, confrontada com a dos ambientalistas. Hoje, a urgência dos resultados na balança comercial oculta as advertências ecológicas. A posteridade haverá de considerar bizarro que a queimada - perceptível mediante o simples uso natural dos sentidos humanos - tenha sido absolvida pelo direito. A cegueira epistemológica advém do dogma indiscutível de que o progresso econômico é o único a interessar à egoísta sociedade contemporânea. Além disso, a avaliação da nocividade, que conclama ao debate sobre os riscos e benefícios, a percepção e o juízo dos analistas foram com freqüência fortemente influenciados por uma assimetria: quem usufrui as vantagens tem voz mais forte e persuasiva que a possível a quem sofre os danos.

Perdeu-se de vista que o drama ambiental há de ser avaliado não só na relação entre o homem e os outros seres vivos, ou no plano das relações intergeracionais, mas também com base na categoria ética da justiça. Os trabalhadores, usados como pretexto para a continuidade da prática rudimentar, são as principais vítimas da queimada. E sofrem duas vezes tais efeitos: no trabalho e em suas residências. São as parcelas da população que suportam peso desproporcional dos efeitos negativos da degradação ambiental. Quem ordena a queimada pode refugiar-se longe dela. Quem serve de instrumento recebe, imediatamente, suas conseqüências.

Outro aspecto pouco explorado é que, na prática, prossegue a vocação colonial dos países que servirão de plantadores e fornecedores de matéria-prima. À metrópole é destinada a energia limpa. Servir-se-á tão-somente dos resultados da queimada, sob a forma de benefícios desvinculados de poluição. A metrópole transfere instalações e produções insalubres, como continua a fornecer detritos tóxicos e nocivos, lixo como pneus usados, por exemplo, aos países pobres. Aqui surge o 'duplo padrão' de higiene do trabalho e segurança ambiental. Padrões elevados em solo pátrio, mínimos nos países adotados pelas multinacionais.

Ignora-se a realidade singela de que só se pode viver num único planeta. O capital produziu a hegemonia da opinião de que normas ambientais eliminam empregos. Criou o mito do 'trabalho x ambiente'. Mas também o despreparo científico, a inércia, falta de vontade política para cumprir leis adequadas, desprezo pela natureza, prepotência do dinheiro, arrogância de quem se considera superior conduziram à intolerável procrastinação da medida correta: a proibição total das queimadas.

Problemas respiratórios de crianças e idosos não foram considerados. Os cálculos econômicos negligenciam externalidades e bens como integridade física dos habitantes do entorno e salvaguarda dos equilíbrios naturais são avaliados a custo zero.

É hora de reavaliar tudo. A existência da duplicidade moral, que fará dos países emergentes os fornecedores de energia limpa, embora com o sacrifício do que lhes resta de cobertura vegetal nativa. A reflexão consistente sobre o tempo geracional, isto é, a influência de nossos erros sobre as futuras gerações e o equilíbrio da biosfera. Se o constituinte erigiu o meio ambiente em direito das futuras gerações, a nós, viventes, só cabe o dever de respeitá-lo e promovê-lo. É verdade que o nascituro não reage, não se defende da destruição de seu hábitat. Mas é preciso ter a consciência atilada, assumir a responsabilidade metafísica, já que a humanidade se tornou um perigo não só para si mesma, mas para toda a biosfera. Espécie única, dentre as demais, capaz de praticar suicídio coletivo e menos homeopático do que se supunha.

Também se mostra essencial levar a sério os princípios do direito ambiental, sobretudo os da prevenção e da precaução. Embora eu não tenha dúvida de que as queimadas são nefastas, não compensam o lucro que geram, a alegada incerteza científica, tão invocada por seus defensores, deveria levá-los a uma abstenção. O princípio médico in dubiis abstine, destinado a evitar em caso de dúvida qualquer ação que possa ser nociva ao paciente, deveria valer como princípio ético também para a prevenção. Os sujeitos morais não podem desconhecê-lo quando insistem nas práticas causadoras de danos coletivos irreversíveis. A eles incumbiria demonstrar, com toda a evidência e suficiência, que a queimada é saudável e que a preocupação dos por ela afetados é exagero ou distúrbio psíquico.

Sem isso, a tolerância dilatada até 2031 será considerada leniência letal, com severo julgamento póstero. Infelizmente, tarde demais para qualquer possibilidade de reparar o erro perpetrado.