Título: Polegar para cima, polegar para baixo
Autor: Weis, Luiz
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2007, Espaço Aberto, p. A2

Quando política é palavrão, a democracia direta parece ser a proverbial luz no fim do túnel. Mas, na realidade, é a dos faróis de uma locomotiva à toda, em sentido contrário. É de imaginar leitores indignados virando a página. Afinal, se os pérfidos políticos traem sistematicamente o povo e fazem da democracia parlamentar uma contrafação do ideal democrático, o remédio heróico só pode vir da democracia direta, por meio de plebiscitos e referendos. É a manifestação plena da soberania popular, a consagração da vontade livre das maiorias, a afirmação sem travas da sua inquestionável sabedoria.

Para os defensores da convocação de consultas populares por iniciativa da própria sociedade, ou pelo presidente da República, à revelia do Legislativo, os seus críticos são, no mínimo, uns reaças elitistas. Deixa-se convenientemente de lado o fato de ultraliberais e libertários de direita também pregarem o resgate da democracia das garras da politicalha, mediante a sua imersão purificadora no seio do povo. Ou é o caso de dizer que a esquerda plebiscitária - de novo na crista da onda, com as sugestões do governo e da OAB ao Congresso - deveria fazer uma assinatura da conservadora Economist para sentir-se confortável.

De há muito, a centenária revista prevê que as sociedades se apropriarão cada vez mais das decisões de Estado, reduzindo o poder de seus representantes eleitos. Na próxima década, e olhe lá, quando se completar o processo de inclusão digital - nenhum domicílio sem computador e conexão ultra-rápida à internet -, começará a expirar o prazo de validade de um sistema representativo carcomido pelos interesses espúrios dos que nele se locupletam. O povo, enfim, legislará sobre as questões essenciais por si mesmo, com um clique de mouse, subordinando a si os seus venais intermediários. À parte o exagero, o cenário mete medo.

Há dez anos, publicaram-se neste espaço argumentos contra o plebiscitismo, essa modalidade de antipolítica tida como o Viagra da cidadania, sem efeitos colaterais. Por não ser necessariamente aquilo, nem, muito menos, estar isento disso, escreveu-se - e convém repetir: 'A consulta popular pode trazer prejuízos à própria democracia cujo aperfeiçoamento ela promete.' Assim como se diz ironicamente que a guerra é assunto sério demais para militares, diz-se, já sem ironia, que muitas decisões legislativas são sérias demais para ficarem com os políticos. Porque, se uns talvez não saibam o que fazer com as baionetas, a maioria dos outros sabe usar o seu voto em benefício próprio.

Nada mais apropriado, aparentemente, do que excluir da alçada do sistema representativo as escolhas destinadas a ter profundas repercussões na vida das populações. Assim se preservariam da sanha negocista que contamina os Parlamentos ao menos as questões com maior valor potencial de barganha, concedendo-se ao principal interessado, o povo, a palavra final sobre a matéria. O raciocínio, como se falava do biquíni, quando era o mínimo, deixa à mostra tudo, menos o essencial. E o essencial da democracia direta está em submeter ao eleitorado questões polarizadoras e, por isso mesmo, de alta voltagem emocional, sob a forma de alternativas esquemáticas e mutuamente exclusivas.

Ou se é a favor do comércio de armas, do direito ao aborto, ou da maioridade penal do adolescente, ou se é contra: polegar para cima, polegar para baixo. Nesse mundo sem meios-termos, o vencedor sempre leva tudo. Os Parlamentos, obviamente, também fazem escolhas dessa natureza, mas tendem a cercá-las de condições que atenuam o absolutismo da decisão vitoriosa. Ainda não se inventou uma forma de levar à consulta popular a letra miúda de um projeto, suas cláusulas e subcláusulas, para que até o eleitor menos preparado vote sabendo no que vota. Já a política, que busca o possível dentro do necessário, permite - no seu melhor - a conciliação mediante concessões recíprocas.

Nesse sentido, impõe aos seus praticantes, se não a todos, às lideranças parlamentares, uma responsabilidade que não há como exigir do eleitor. Este é chamado a dizer apenas sim ou não, no fogo cruzado de campanhas de propaganda que, para serem eficazes, reduzem a pele e ossos os temas mais complexos, estimulam o passionalismo em prejuízo da razão e tratam os pontos de vista dos adversários como emanações do demônio. Corrompe-se a consciência de um deputado com favores, cargos ou dinheiro vivo. Corrompe-se o juízo de um eleitor com a simplificação dos problemas, a distorção dos fatos e a exaltação de fim de Copa.

Os políticos ostentam armas pesadas e dão tiros de festim. Em conseqüência, costumam produzir leis que não satisfazem 100 por cento a ninguém, mas representam aquilo que em cada momento é o máximo ao alcance das partes em confronto. A tão malfalada negociação é precisamente o que serve para dar ganho de causa à maioria, sem aplastar os perdedores - e o respeito ao direito das minorias, vale lembrar, é a pedra de toque dos sistemas democráticos. Por isso, a distinção primeira entre a decisão direta e a decisão delegada não diz respeito apenas à integridade ou à competência de quem decide. Refere-se, antes, às condições sob as quais se decide.

Nos grandes momentos, apesar de tudo, os Parlamentos ouvem as muitas vozes das ruas. Em circunstâncias iguais, o plebiscitismo consagra a tirania do grande número. Não se trata de riscar a democracia direta do mapa. Ela funciona melhor quando aplicada a questões restritas, em escala local. O condomínio, a escola, o emprego, o clube, o bairro, a cidade - eis os níveis típicos em que a participação pessoal pode formar cidadãos. Mas a lógica da comunidade não é a mesma da sociedade, já explicava em 1887 o sociólogo alemão Ferdinand Tõnnies - o que alguns aprendizes de feiticeiro da política, escolados em outros ofícios, ainda não entenderam.