Título: No meio da mata, a campeã em violência
Autor: Carranca, Adriana
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2007, Especial, p. H2

Existe um lugar no Brasil em que nem mesmo o prefeito da cidade é dono do terreno onde está sua casa. Esse lugar é um dos maiores municípios em extensão do País, com vasta terra para cultivo e repleto de madeiras nobres. Mas é terra de ninguém. E já foi terra sem lei. Perdida no meio da mata de Mato Grosso, na divisa com o Amazonas e Rondônia, Colniza é o lugar brasileiro mais violento, tudo porque é desassistida pelo Estado e governado pelas mãos de quem pode mais, facilitando a invasão de forasteiros. Característica também da segunda no ranking, Juruena, localizada a cerca de 200 quilômetros da primeira.

Em Colniza, busca-se madeira; em Juruena, buscou-se ouro. Tanto uma quanto a outra contam com um policiamento aquém do necessário e, até pouco tempo atrás, não tinham nem sede do Poder Judiciário. E os conflitos se espalharam por todos os cantos, integrando à rotina da população o costume de conviver com assassinatos cometidos em meio a bares, ruas e assentamentos irregulares.

Colniza, a 1.095 quilômetros de Cuiabá, capital de Mato Grosso, tem 27,9 mil metros quadrados, e pouco foi habitada. A zona urbana é de ruas largas, a maioria de terra, com iluminação pública escassa e amarelada, mas tranqüilas. Só que não era bem assim até dezembro de 2005. Poucas pessoas circulavam pelas vias, sem calçadas, ladeadas de casas e comércio construídas com ripas de madeira, escondendo um passado amargo e assustador, típico de um faroeste, recheada de olhos amedrontados e de guaxebas - os pistoleiros dos fazendeiros do município, às vezes policiais fazendo um extra.

Para ter uma idéia do que acontecia na cidade, em apenas um mês de 2002 foram contabilizados cerca de 30 homicídios, considerado um exagero para uma grande metrópole, imagine para um cidade com cerca de 13 mil moradores - segundo o Censo - e 40 mil, de acordo com estimativa local, por causa da população flutuante de migrantes. Metade morando na zona rural e a outra, na zona urbana.

Graças à instalação de uma comarca na cidade, em dezembro de 2005, a situação melhorou - mas ainda está longe do que poderia ser considerado ideal. Hoje o clima é bucólico, embora ainda seja uma terra sem dono. Não há na zona urbana quem tenha título do terreno em que está. A zona rural, completamente abandonada pelo governo, já foi palco de uma verdadeira guerra civil: batalha entre os grileiros (ou posseiros) por um pedaço de terra para o extrativismo de madeira, a locomotiva da economia local. ¿Era um lugar abandonado pelo Estado, não tinha nem delegacia de polícia, apenas quatro policiais militares¿, conta o juiz da comarca da cidade, Michell Lotfi Rocha da Silva. Com apenas 29 anos, Silva é apontado como o homem que colocou lei onde quem mandava era o mais forte.

Mesmo mais calma, ainda hoje os crimes são muitos. Em todo o ano de 2006, foram 17 homicídios, a maioria pelos mesmos motivos de sempre: disputas de terra ou vingança. Este ano, foram três mortes até agora.

De acordo com Silva, é possível contabilizar 20 zonas de conflito no município. O gabinete do juiz, repleto de processos por todos os lados, é uma fotografia do que ocorre na cidade: eles se dividem principalmente em reintegração de posse e condenações por porte de arma.

O prefeito, o médico Adir Ferreira de Souza, que não tem escritura da casa onde mora, uma chácara um pouco distante da região central, explica que a barbárie no município vem desde a chegada dos primeiros habitantes, por volta de 1985: 73 famílias do sul do País, todas, óbvio, atrás de terra, apoiadas num projeto de colonização que não vingou. Muitas pessoas foram embora. ¿Virou uma especulação. O próprio terreno do Incra (de 80 mil hectares para assentamento), que não podia ser vendido, começou a ser especulado. As pessoas, predominantemente de Rondônia, começaram a vir para Colniza.¿

A cidade foi fundada em 26 de novembro de 1998. ¿As pessoas iam chegando, invadindo e criando os loteamentos sem nenhuma infra-estrutura, sem nenhuma aprovação, atrás de terra e de madeira para especular.¿ E a violência tomou o lugar. ¿Se tinha uma área com bastante madeira, o outro matava para tomar posse da terra, e se tornou uma cidade com muita fama de violenta.¿

A prefeitura estima que existam cerca de 3 mil famílias assentadas irregularmente, e 2,3 mil dentro da legalidade. Moradores e políticos ligados aos assentados afirmam que já chegam a 4 mil o número de famílias.

Vitima dessa disputa insaciável por um lugar próprio, a família de seu Esmeraldo Gomes de Amorim, de 61 anos, famosa na cidade por ser de ¿bons¿ grileiros, perdeu um filho e um neto num suposto confronto com a polícia. Maria José, de 54 anos, mulher de seu Esmeraldo, afirma que os dois rapazes trabalhavam em um assentamento quando foram atingidos por policiais que faziam o trabalho de vigia para o fazendeiro da área.

A polícia informa que houve confronto e que os dois estavam armados. A corporação não confirma a participação de policiais que já atuaram como pistoleiros, mas também não nega.

Maria afirma que o filho e o neto já estavam marcados para morrer, pois sempre, assim como seu Esmeraldo, recebiam ameaças. Aliás, raro quem nunca recebeu um recado ou esteve em situação insegura em Colniza. Parte da família do pequeno produtor já esteve atrás das grades de carceragens por problemas de conflito em invasões. Até mesmo ele, ao tentar buscar outro pedaço de terra. ¿Eu não sou bobo, fui também. Dentro de 500 (é o número de pessoas que ele estima ter invadido a Fazenda Bauru), eu não posso ter um lote?¿ Mas nega ter exercido papel tão importante na invasão.

Um dos grandes problemas em Colniza é a falta de policiais para fiscalizar o município todo. Hoje, são 14 policiais, contados os três de Guariba, um distrito a cerca de 150 quilômetros do centro da cidade. ¿Em função do tamanho do município, deveria ter pelo menos 30 policiais¿, diz o comandante da equipe local, tenente Edinaldo José dos Santos, de 41, em Colniza há cinco meses.

Por falta de segurança, a alternativa que alguns moradores encontraram foi contratar seguranças privados. O advogado Robson Medeiros carregou consigo, por muitos anos, quatro homens armados. Ele conta que já teve seu escritório queimado, com tudo dentro. Há duas semanas, a casa onde mora foi baleada: os sinais ainda podem ser vistos na parede de madeira.

Medeiros, que hoje se sente mais tranqüilo, diz que é comum encontrar pessoas com colete à prova de balas transitando por Colniza. Um deles é o caseiro Márcio Ricardo Martinelo Moreira, da Fazenda Bauru, alvo de invasões. Segundo José Jorge, filho do dono da propriedade rural, de 80 mil hectares, a sede deles e vários carros já foram queimados pelos grileiros. A família foi expulsa da cidade, com medo das ações dos posseiros.

Segundo o advogado da família, Éder Marcos Bolsonário, Colniza é hoje refém de uma quadrilha organizada formada pelos empresários do setor madeireiro, que dão subsídios para os invasores por conseguirem madeira mais barata.

JURUENA

A cerca de 200 km de Colniza, em Juruena, Marquinho, como é chamado o produtor rural Marcos Kniess, de 47 anos, teve, por muito tempo, de trancar as janelas de sua chácara assim que o sol começava a se pôr para diminuir o impacto do som do tiroteio e evitar que uma bala perdida atingisse sua família. ¿Quase fui embora. A gente se acostuma.¿

A cidade é a segunda no ranking das mais violentas. Pacata, onde celular não pega, o título é atribuído a um garimpo que houve no local entre 2002 e 2004. A cidade, com cerca de 7 mil moradores, segundo o Censo, segue um ritmo de expansão comercial. Terra cheia de ouro, o garimpo é lembrado por muitos com mágoa, ódio e medo. Mas há quem sinta muita saudade do tempo em que as poucas ruas da cidade ficavam lotadas com os cerca de 2 mil garimpeiros ali chegados para explorar a região de assentamento, chamada de Vale do Amanhecer.

Com apenas quatro policiais militares, a briga pela terra também foi o motivo do registro de pelo menos 33 assassinatos em 2002, quase todas no garimpo. Os dados não são completos, pois a polícia não sabe de todos os crimes. ¿No garimpo, prevalece a lei do silêncio¿, diz o soldado Orlando Matiazzo, de 43 anos. ¿Muitos garimpeiros, que vinham de outros garimpos, acertavam as contas aqui. Tinha muita droga e prostituição.¿

O número caiu bem depois de os garimpeiros terem procurado novo destino, mas ainda é alto: 6 homicídios em 2006. A maioria em brigas de bar. Falar em garimpo na cidade, para quem trabalhou nele, é tabu. Poucos moradores confirmam ter participado da atividade. Mas revivem a cicatriz do desmatamento.

Altair da Silva, de 33 anos, pegava todo dia, bem cedinho, a ¿cobrinha¿ (caixa usada para lavar o cascalho) e começava a buscar ouro. Da cuíca, o que separava o ouro das pedras, tirava entre 70 e 100 gramas por dia de trabalho.

Época violenta, ele confirma, mas áurea. Hoje mototaxista, Silva adquiriu o atual instrumento de trabalho graças ao garimpo, além de aplicar um outro tanto. As brigas, diz, foram depois da chegada das cantinas, espaço de venda de bebidas, e mulheres. ¿Mas a rixa era tudo de gente de fora.¿ O sentimento dele é de saudade. ¿Rodava mais dinheiro, era melhor para todo mundo.¿

O prefeito da cidade, Bernardinho Cruzeta (PPS), discorda. ¿Trouxe muita coisa errada.¿ Além das mortes, ele lembra dos surtos de malária que lotaram os leitos municipais. ¿O garimpo não dá futuro, só estragou o município e deu prejuízo, foi uma época de desgaste público.¿ Foi ele quem decidiu acabar com a atividade, porque a devastação já atingia áreas de preservação. Até deu cerca de 80 passagens para os ¿intrusos¿ voltarem para suas terras.

Juruena não tem sequer carceragem própria. Uma é construída agora, com duas cela. A sede da Justiça também não chegou, e tudo é encaminhado para Cotriguaçu, a 60 quilômetros dali.