Título: 'Madeiras e terras de sangue'
Autor: Carranca, Adriana
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/02/2007, Especial, p. H2

Quatro das dez cidades com maior taxa de homicídios por 100 mil habitantes no Brasil ficam no Estado de Mato Grosso, segundo o levantamento da Organização dos Estados Ibero-Americanos. Para o professor Naldson Ramos da Costa, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e Cidadania da Universidade Federal de Mato Grosso, o fenômeno encontra motivo em uma única palavra: grilagem.

Disputas por terras sempre existiram nos rincões brasileiros. Agora, no entanto, têm sido motivadas pelo lucrativo comércio de madeira ilegal da Amazônia, suportado por um esquema que vem ganhando status de máfia. Mais ou menos, diz o professor, como o que ocorre com os diamantes na África do Sul. ¿Lá, existem os diamantes de sangue, aqui é a madeira o foco das disputas sangrentas¿, diz Costa. Ele concedeu a seguinte entrevista ao Estado:

O que existe em comum entre Colniza, Juruena, São José do Xingu e Aripuanã?

Colniza é o município de maior fronteira com o Amazonas e Juruena e Aripuanã são cidades vizinhas a ela. Todas estão em área da Floresta Amazônica, onde os órgãos fiscalizadores e de segurança pública têm pouca influência, dados os enormes interesses econômicos locais. Esses municípios vivem da atividade extrativista de madeira, legal e ilegal. Apenas em Colniza, cidade com cerca de 13 mil habitantes, há 46 madeireiras organizadas. Elas têm um poder econômico e lobístico muito grande. Mandam na região, abandonada pelo governo do Estado de Mato Grosso. São José do Xingu é outro foco. Ali, a violência é intensificada pela presença dos índios, que disputam a extração de madeira com fazendeiros e madeireiros, e o ouro dos garimpos que estão em suas terras.

As madeireiras são ilegais?

Muitas são legalizadas, mas que acabam incluindo em seu estoque madeira ilegal, outras são totalmente ilegais.

De que forma a violência se dá nessas regiões?

A violência é camuflada por uma falsa disputa de terras. Madeireiros identificam grandes latifúndios no meio da mata, cujos proprietários não vivem na região e aliciam homens pobres nas periferias das grandes cidades para grilar essas terras. São falsos ¿sem-teto¿, agenciados por homens contratados pelos madeireiros. Eles são motivados pela promessa de vender cada tronco de árvore que arrancarem. Até que os proprietários se dêem conta da invasão, eles vão cortando as maiores e mais antigas - troncos de mogno e cerejeira, muito cobiçados, chegam a 30 metros de altura e 3 de diâmetro e são vendido a US$ 3 mil no mercado internacional. Levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia estima que Mato Grosso tenha perdido mais de 420 quilômetros quadrados de floresta apenas em novembro, a maior parte em propriedades rurais. Os pseudo-grileiros plantam no lugar pequenas roças para ludibriar as autoridades que, de qualquer forma, só costumam chegar ao local quando a disputa por aquela terra já está consumada entre os invasores, armados pelos madeireiros, e seguranças contratados pelos donos das fazendas. É por causa desses conflitos, sangrentos, que essas cidades registram tantos homicídios e ocupam espaço entre as mais violentas do Brasil.

Por que a fiscalização não consegue evitar o desmatamento?

Fiscais da Secretaria do Meio Ambiente, às vezes, têm de viajar três ou quatro dias para chegar a um local como esse. Até que se dêem conta, os madeireiros já extraíram o que queriam, os pseudo-grileiros, quando não são mortos, receberam sua parte na venda da madeira e, expulsos pelos proprietários, já foram para outras terras. Mesmo que sejam encontrados, são pessoas miseráveis, muitos nem têm documentos, justamente por isso são aliciados. Não podem sequer ser multados. Às vezes, a fiscalização fecha as serrarias, mas elas são reabertas em outro local. Fiscais e policiais são ameaçados ou corrompidos, muitos políticos fazem vista grossa porque a madeira acaba sendo a única economia desses municípios mato-grossenses, outros são coniventes. É terra de ninguém. Até proprietários das terras ganham com o negócio.

Como?

É quase impossível para donos das fazendas obter as licenças ambientais necessárias para desmatar em área de Floresta Amazônica e mesmo se conseguirem autorização, eles têm de preservar 80% da área. Então, esperam a terra ser invadida, deixam os invasores cortarem as árvores, depois os expulsam de lá a tiros e ficam com a terra livre para plantar sua soja. É assim que a soja está se espalhando sobre a Amazônia.

Sempre houve disputa de terras. O que intensificou a violência?

O governo Lula, digo, a ministra Marina Silva (Meio Ambiente) tentou intensificar a fiscalização, fechando o cerco sobre áreas preservadas. Mas os madeireiros encontraram esse esquema mafioso como alternativa para seguir desmatando.

O que pode ser feito?

É um conjunto de medidas. Primeiro, usar a inteligência da Polícia Federal para desmontar esquemas como esse que, muitas vezes, envolvem gente graúda, entre políticos e empresários. Depois, o que já sabemos: fortalecer os órgãos de polícia, combater fortemente a corrupção e reforçar a fiscalização. O Ibama e o Ministério do Meio Ambiente têm uma carência imensa de pessoal e recursos. Às vezes não têm sequer dinheiro para a gasolina. As delegacias de meio ambiente ficam no centro das cidades e até que acessem terras remotas a violência já se consumou. Do jeito que está, Mato Grosso é, realmente, um Estado sem lei.