Título: O golpe do falso seqüestro
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2007, Notas e Informações, p. A3
A prova mais inequívoca da inépcia do aparato de segurança pública são os sucessivos recordes que o crime de falso seqüestro vem batendo. Somente na cidade de São Paulo, entre 1º de janeiro e 14 de fevereiro, o Centro de Operações da Polícia Militar registrou 3.150 queixas contra bandidos que tentaram extorquir pessoas de boa-fé por meio de chamadas telefônicas, alegando que mantinham em cativeiro filho ou cônjuge da vítima. Para efeitos comparativos, em 2006 os órgãos policiais receberam cerca de 10 mil queixas de pessoas que declararam ter sido vítimas desse golpe em todo o País. Há duas semanas, uma sexagenária teve um enfarte fulminante ao receber uma ligação de um golpista, que pedia R$ 60 mil para libertar seu filho. E, há dias, uma aposentada desesperada tentou embarcar no Aeroporto de Congonhas para o Rio de Janeiro levando dinheiro pedido por falsos seqüestradores.
O mais grave é que esse tipo de crime começou a ser praticado em larga escala a partir de chamadas feitas de dentro de penitenciárias do Rio de Janeiro por meio de telefones celulares. As primeiras tentativas de extorsão por telefone ocorreram na Penitenciária Carlos Tinoco da Fonseca, situada na cidade de Campos. Em seis meses, os presos dessa unidade lesaram mais de 1,5 mil moradores das Regiões Sul e Sudeste. A polícia estima que cerca de 71% das ligações continuam partindo do interior de presídios fluminenses, especialmente da Penitenciária Evaristo de Moraes e do complexo de Bangu.
Segundo a polícia, de todos os criminosos já indiciados por esse tipo de delito, 70% são presidiários. Ou seja, quem foi condenado pela Justiça criminal a cumprir pena em penitenciárias de segurança máxima encontra grande facilidade para, mesmo trancafiado, continuar delinqüindo. O paradoxo dá a medida das proporções dramáticas que a crise da segurança pública atingiu, a ponto de o Estado não conseguir coibir delitos flagrantes nem mesmo dentro de suas dependências.
Esse é o aspecto mais dramático da escalada da violência e da crise da segurança: o poder público que prende, julga e condena não é capaz de manter a ordem dentro do sistema prisional nem de coibir o simples uso de um celular. Só no mês passado, as autoridades paulistas apreenderam 214 aparelhos em poder de presos, a maioria fornecida por agentes carcerários corruptos. A polícia estima que existam 800 centrais telefônicas clandestinas em todo o País.
Nos países desenvolvidos, o uso de celulares nas penitenciárias é expressamente proibido. Além de ter sua pena aumentada e de perder regalias, o preso infrator cumpre um período em solitária, isolado dos demais presos. No Brasil, por razões inexplicáveis, o Congresso até hoje não votou uma lei com esse propósito. O projeto que classifica como ¿falta grave¿ o uso de celular por presos continua tramitando no Legislativo. E, quando as autoridades carcerárias eventualmente se tornam mais rigorosas nas revistas, nos dias de visitas, as facções criminosas não apenas promovem fantasiosas denúncias contra a ¿opressão carcerária¿, como ainda se dão ao acinte de promover ¿greves brancas¿. Até a adoção de medidas mais rigorosas para presos de alta periculosidade, como as previstas no ¿Regime Disciplinar Diferenciado¿, é questionada por entidades jurídicas, associações religiosas e ONGs, convertendo-se em objeto de intermináveis discussões ideológicas.
Diante disso, era inevitável que o falso seqüestro ganhasse uma dimensão alarmante, tornando-se a nova coqueluche do crime organizado. O que começou com telefonemas de delinqüentes presos no sistema penitenciário fluminense hoje envolve quadrilhas constituídas por bandidos fora das grades, que levantam informações detalhadas sobre as vítimas e exigem que elas paguem ¿resgate¿ por meio de transferência bancária eletrônica. Em média, 20,5% das vítimas abordadas acreditam nas ameaças e cedem à extorsão.
Os recordes que o crime de falso seqüestro vem batendo expõem a aflitiva precariedade da situação do Estado brasileiro, em matéria de enfrentamento da crise da segurança pública.