Título: A magia das dívidas brasileiras
Autor: Buainain, Antônio Márcio e Biasoto Junior, Geraldo
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/02/2007, Economia, p. B2

Há anos um objetivo central da política macrobrasileira é reduzir o nível de endividamento do setor público em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), considerado uma das principais fragilidades da macroeconomia do País e responsável pelo bloqueio dos investimentos públicos. Embora não existam números testados pela teoria, a convenção do mercado adota o parâmetro de 60% do PIB como um endividamento altamente perigoso e de 40% como indicador de uma economia saudável. A receita para estabelecer uma tendência de queda na relação dívida pública/PIB é produzir superávit nas contas primárias do setor público (isto é: receitas menos despesas públicas, excluídos os juros) para cobrir pelo menos parte da rolagem da dívida.

As metas de superávit primário foram sucessivamente elevadas nos últimos anos à medida que o mercado cobrava maior disposição governamental para enfrentar o problema da dívida. E foram cumpridas, feito notável num país onde as metas parecem ser definidas apenas para revelar boas intenções que não são levadas a sério por ninguém, muito menos pelo governo. O remédio, no entanto, não apresentou os efeitos esperados, em que pese ter sido aplicado em doses elevadas. Os últimos números divulgados pelo Banco Central, em nota para imprensa, mostram que a dívida, quando medida pelo conceito de Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) - que compensa ativos e passivos entre órgãos e entidades de governo -, não se retraiu na magnitude do esforço feito. Entre dezembro de 2002 e 2006, a relação dívida/PIB caiu de 55,5% para 50% do PIB. Esta redução de 5,5 pontos não é exatamente alentadora, quando se considera o crescimento do PIB e o enorme esforço fiscal. Só o patamar de juros pagos aos credores do setor público pode explicar tal desempenho.

Além disso, a análise do principal componente da DLSP, a Dívida Mobiliária do Tesouro Nacional, mostra uma impressionante expansão entre finais de 2002 e dezembro de 2006, de 33,6% do PIB para 50,1%. Esse ganho de 16,5 pontos de porcentagem do PIB levou o estoque de dívida mobiliária a superar a DLSP. Vale notar que, por causa dos prazos e dos mecanismos de mercado ante os fundos e as estruturas bancárias, a concentração do endividamento na dívida mobiliária é altamente preocupante, dado que os impactos da volatilidade são rapidamente transferidos à sua gestão diária.

Outro ponto a destacar é a evolução da dívida externa governamental, que passou de uma dívida de 14,3% em dezembro de 2002 para uma posição de haveres líquidos de 3% do PIB. Ou seja, o governo da impagável dívida externa pública (a da moratória) virou credor do resto do mundo! Parte expressiva da mudança de posição se deve à acumulação de reservas por parte do Banco Central. Embora positiva, na medida em que reduz a insegurança externa e contribui para frear a queda livre do dólar diante do real, essa política vem sendo executada a custos mais elevados do que o necessário em razão do mesmo fator que restringe a redução maior da relação dívida/PIB: os juros elevados.

Vê-se que a magia do dinheiro se apresenta em grande estilo no caso brasileiro. Todo o esforço fiscal não é suficiente para reduzir expressivamente a dívida pública global. E, dentro dela, a parte mais volátil, a dívida mobiliária, apresenta trajetória crescente e potencialmente desestabilizadora. Reduzir a dívida é um objetivo saudável. O problema é a inadequação da terapia: elevação do superávit fiscal com manutenção de juros elevados e falta de controle dos gastos correntes, cuja dinâmica é definida mais pelas corporações que em razão da necessidade de melhorar a qualidade e eficiência do serviço público em geral. O resultado final é que o País sofre severamente com as restrições impostas, em particular pela falta de investimentos essenciais para assegurar o crescimento econômico, sem ter a perspectiva de recuperar a saúde em futuro imediato e recobrar as forças para voltar a investir em desenvolvimento. Neste momento em que se pretende relançar a economia brasileira por meio do PAC, é evidente a necessidade de se repensar essa terapia e agir com coragem nas duas frentes: a dos juros e a dos gastos correntes.