Título: Verdade inconveniente, versão nacional
Autor: Macedo, Roberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2007, Espaço Aberto, p. A2

O filme Uma Verdade Inconveniente levou o Oscar de melhor documentário e o de melhor canção. Vale a pena vê-lo. Alguns o olharão como críticos de cinema; muitos, como outro filme interessante; e não tantos reagirão diante de sua mensagem. Como professor, o que vi foi uma aula ou palestra, pois o enredo e tudo o mais se desenrolam em torno de uma delas, conduzida pelo personagem central, o político americano Al Gore, cujo talento como mestre me impressionou. Também vi o filme como aluno, aprendendo mais sobre o assunto.

Universidades deveriam correr para dar a Gore títulos de doutor honoris causa por sua pessoa e pelo que defende. Professores deveriam ver o filme várias vezes, para absorverem um pouco que seja da didática do personagem central e para examinarem os muitos recursos que utiliza, buscando pelo menos alguns deles.

Ao longo de sua carreira, Gore chegou a ser visto como um chato, chamado até de Al ¿Bore¿. Agora, já se fala dele como Al ¿Bore No More¿, e poderia ter ido além dos cem minutos do filme sem aborrecer suas audiências, tanto a que atua nele como as que o vêm. Aquela deve ter sido de figurantes treinados para servir de ¿extras¿ e algumas tomadas devem ter sido repetidas. Mas vale lembrar que ele fez a mesma apresentação ou variantes dela centenas de vezes. Exercícios, repetições e persistência também integram o aprendizado de um bom professor.

Quanto ao ¿software¿ utilizado, dado o micro portátil que Gore usa e por uma breve referência ao final, nos créditos do filme, pareceu-me que tenha utilizado recursos da linha Apple Macintosh. Quem dominar o assunto, por favor, me informe o caminho, pois depois do que vi acho primitivas minhas apresentações e as que tinha visto até aqui. Mas onde encontrarei telas como a que usou? Já dei palestra até em igreja, mas ainda não projetei nada em telas como essa, que, como o filme, é coisa de cinema.

Só não me agradou um outro tipo de ¿hardware¿, quando Gore opera uma plataforma que o eleva do solo alguns metros para acompanhar simultaneamente a linha de um de seus gráficos, a qual subia para mostrar mais uma evidência de que o aquecimento global se agrava seriamente. Ainda que brincando, ele mesmo reconheceu o risco de acidentes. Registre-se, entretanto, o uso da teatralidade como recurso didático.

Já pelos meus olhos de economista, o Brasil carece de vários pregadores dessa qualidade voltados para um outro assunto, o maior problema econômico do Brasil. Assim, enquanto Gore fala do aquecimento global, um outro tema aqui seria o desaquecimento da nossa economia.

Esse já é um problema crônico, dura meio quarto de século, uma eternidade para quem vive o desastre. Cientistas econômicos e de outras áreas deveriam ir a fundo nas suas conseqüências. Quantos empregos deixaram de ser gerados por não termos crescido em média pelo menos uns 5% ao ano nesse período, que continua a se estender? Qual seria a renda média nacional hoje e quantas pessoas teriam deixado a linha de pobreza se o crescimento não tivesse sido tão medíocre como o que vemos há tanto tempo? Quantos não tiveram sua baixa expectativa de vida mantida por esse marasmo duradouro, ou quantos não teriam deixado de morrer por carências evitáveis com um crescimento bem maior? Quantos crimes, de famélicos a hediondos, um crescimento desse tipo teria evitado?

E mais: como no caso do aquecimento global, que muitos vêem como natural, o que leva ao conformismo com essa situação, em que há até malucos que acham que nossa economia não pode crescer mais de 3,5% ao ano?

No Brasil, também é preciso denunciar o jogo político e os interesses que jogam de forma a manter o marasmo econômico. No filme, Gore denuncia um executivo da indústria petrolífera que vai para o governo e fica numa posição ligada ao meio ambiente na qual refaz, conforme seu credo em sentido contrário, um relatório que mostrava a seriedade do aquecimento global. Aqui, entre outros movimentos do tipo, há o vaivém que opera do setor financeiro para as autoridades monetárias, com a diferença de que não é preciso nem refazer relatórios, pois estes há muito tempo seguem a tradição de interesses compartilhados.

Ainda quanto ao conformismo, há no filme uma proposição interessante que também faz sentido aqui. A de que quando um problema se agrava de forma muito diluída no tempo, como o aquecimento global, as pessoas mostram pouca sensibilidade a ele, sendo também contida sua reação para resolvê-lo.

Para ilustrar a idéia se mostra um boneco na forma de um sapo que, jogado num recipiente com água fervendo, reage imediatamente e pula fora. Todavia, se deixado em água morna, que em seguida se aquece progressivamente, corre o risco de morrer, pois fica lá no fundo e se acostuma com a temperatura. Quando percebe a gravidade da situação, já está amortecido para reagir.

No filme, uma mão salvadora o tira dessa situação. Aqui, o frio lento, mas contínuo, parece anestesiar a consciência da Nação, pois ela não reage nem mesmo diante de quem nesse contexto apregoa paternidade de pobres, ¿espetáculos de crescimento¿, um PAC de superfície e outras mistificações.

Será que precisaremos esfriar ainda mais nossa economia e levá-la a uma era glacial para que, jogados nela nossos sapos políticos - cuja maioria se contenta apenas em coaxar sem saltar -, sinta de fato quão gélida é a temperatura e efetivamente reaja diante dela?

Como o filme argumenta, a mão salvadora não é única. O primeiro passo é o de tomar consciência do problema, difundir sua gravidade e juntar, para reagir, as forças de todos os inconformados.