Título: A estranha lógica dos mercados
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Fonte: O Estado de São Paulo, 01/03/2007, Notas e Informações, p. A3

A Bolsa de Xangai se recuperou, ontem, parcialmente da queda de 8,8% no pregão da véspera, tranqüilizada pelas informações de que o governo de Pequim, ao contrário do que difundiam os rumores que deram a volta ao mundo na segunda-feira, não pretende adotar medidas para reduzir o vertiginoso ritmo de crescimento da sua economia, que começariam pela taxação dos lucros das ações. No ano passado, intensificando uma tendência iniciada em meados de 2005, as bolsas chinesas se valorizaram astronômicos 130%. Os principais jornais do país - correias de transmissão do regime - também noticiaram a intenção das autoridades de abrir ao capital externo o mercado acionário chinês, que num dia normal movimenta a bagatela de US$ 1,5 trilhão. Os mercados acionários no resto da Ásia ainda assim continuaram de crista baixa - mas os do resto do mundo já ontem voltaram à normalidade, apesar das advertências de Alan Greenspan sobre a possibilidade de um ¿pouso suave¿ da economia norte-americana no último trimestre deste ano, que inicialmente foram consideradas como ¿causa auxiliar¿ da turbulência violenta da terça-feira.

No começo da semana, coincidindo, ou não, com a divulgação de indicadores menos róseos do que os esperados (ou melhor, desejados) sobre o desempenho das atividades nos EUA, Greenspan declarava: ¿Quando nos distanciamos tanto de uma recessão, invariavelmente algumas forças começam a se acumular para a próxima recessão e, de fato, estamos começando a ver sinais.¿ Dele se diz, por causa de sua proverbial prudência e aversão à ¿exuberância irracional¿ dos mercados, que, quanto mais azul o céu, mais motivos ele enxerga para sair de capa e guarda-chuva. A frase não tem nada de bombástico para justificar o ¿efeito manada¿ das ordens de venda em cascata que teria contribuído para desencadear. Ele poderia ter dito simplesmente que as árvores não crescem até o céu, porque é de sua natureza, como é da natureza das economias de livre mercado alternar ciclos de vacas gordas, médias e magras - e nem por isso os investidores deveriam se desesperar, fugindo em pânico do risco e remanejando os seus ativos a toque de caixa.

O problema é que o capital tem a sua própria lógica. Assim como a política, diferentemente do que sustenta o marxismo vulgar, não é apenas e tão-somente um reflexo dos conflitos na esfera econômica e das relações de poder entre as classes, também os mercados financeiros operam com menor ou maior autonomia em relação aos movimentos próprios da vida econômica - desde o comportamento dos capitais de risco até as expectativas dos consumidores, passando pelo efeito das mudanças tecnológicas ao longo da cadeia produtiva, para não ir mais longe. Não há, em outras palavras, uma relação mecanicista de causa e efeito entre os altos e baixos do sistema de criação de riquezas, nele incluído o comércio mundial, e a intensidade do sobe-e-desce nos apropriadamente chamados cassinos financeiros. A globalização dos negócios com papéis e o peso crescente dos mercados futuros, na instantaneidade proporcionada pela rede mundial de conexões eletrônicas - o tempo real e o online louvados em prosa e verso -, tendem a fixar perigosamente esse cenário de universos paralelos: o da especulação e o da produção. É o que está por trás da noção de que os mercados globais são inerentemente instáveis.

O surto de pânico que se propagou a partir de Xangai é um exemplo desse ¿modo de produção¿ financeiro que se afigura aos não iniciados como possuído por uma entranhada irracionalidade. Deveria ser do conhecimento de todos, antes de tudo, que já há algum tempo - e em boa hora - o governo chinês tenta baixar gradual e moderadamente a temperatura da incandescente economia nacional. Pequim aumentou os juros duas vezes no ano passado e, na segunda-feira, aumentou de 9,5% para 10% o compulsório dos bancos. Se o bom senso, como ironizava Descartes, fosse a coisa mais bem distribuída no mundo, essas típicas medidas de desaquecimento de um sistema que se expande à razão de 10% ao ano - um freio de arrumação, em suma - seriam saudadas como prova de maturidade dos dirigentes chineses. E como uma excelente notícia para todas as economias do mundo que já sofrem com a concorrência comercial predadora da China. Só a ganância febril dos especuladores chineses pode ver nisso motivo para alarme.