Título: A ameaça nuclear da China
Autor: Helprin, Mark
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2007, Internacional, p. A8
Antes de comemorar a détente com Kim Jong-il, pode ser útil lembrar que, embora acordos tenham sido alcançados no passado, seus compatriotas produziram armas nucleares e realizaram um teste. Mas a Coréia do Norte, cujo rico arsenal químico e biológico neutralizou há tempos as armas nucleares táticas americanas na Península Coreana, embarcou num programa de sobrevivência por meio de extorsão e abandonará de bom grado um poder do qual não precisa em troca de reconhecimento e mercadorias essenciais. A potência nuclear asiática que devemos considerar não é a Coréia do Norte, e sim a China.
Os precursores do governo chinês derrotaram Chiang Kai-shek; combateram os EUA na Coréia, fazendo com que a guerra terminasse empatada; e, aproveitando-se apenas do potencial assustador de seu país, ajudaram a derrotar os americanos no Vietnã. Fizeram tudo isso em meio à pobreza e sem armas modernas, mas com inata habilidade estratégica. Desde 1978, usando o crescimento econômico e técnico extraordinário e sustentado para acumular poderio militar, os chineses seguem os passos de Mutsuhito (que fez do Japão feudal um Estado industrial capaz de subjugar os russos em Tsushima).
Alterando sua posição em relação à dos EUA, os chineses receberam generosa assistência dos nossos dois últimos presidentes, que reduziram despreocupadamente as forças de batalha e distribuíram com incompetência o que restou, em campanha equivalente a uma derrota num confronto prolongado com Portugal. A China avança e nós decaímos porque, entre outras coisas, sua visão é disciplinada e clara, enquanto a nossa é ofuscada pelo medo, pela decadência e por funcionários que não entendem a alta estratégia chinesa e seu componente nuclear.
Isso leva os EUA a encorajarem a China, inadvertidamente, a buscar a paridade nuclear. Nos próximos cinco anos, enquanto reduzirmos nosso arsenal de 10 mil para 1.700 ogivas estratégicas, os mísseis chineses com ogivas múltiplas independentes (MIRV) baseados em silos e as iminentes gerações de mísseis balísticos intercontinentais (ICBM) tipo MIRV, móveis e baseados no mar, permitirão facilmente uma superação do número de ogivas hoje estimados entre 80 e 1.800.
Antes, o grande desequilíbrio (em 1987, de 500 para 1) poderia ter desencorajado a China. Não é mais o caso. Nossas reduções e o crescimento deles resultam em menos alvos para mais mísseis e criarão a chance (e portanto a tentação), de um primeiro ataque. Enquanto cortamos o braço marítimo de nosso fator de dissuasão nuclear, reduzindo o número de submarinos com mísseis balísticos de 37 para 14, a China constrói uma frota capaz de oferecer bastiões protegidos no mar, assim como encurralar as poucas embarcações americanas posicionadas.
A competição nuclear entre potências maduras e emergentes não é inédita nem inesperada, mas a regra sempre foi a de que, se o potencial nuclear existe, deve ser combatido. Embora tenhamos abandonado essa regra, a China não abandonou. Sabendo dos planos dos EUA de usar armas nucleares se a China violasse o armistício coreano, Pequim buscaria compreensivelmente o equilíbrio, se não a preponderância, nuclear.
O perigo repousa também em estratégias nucleares que, graças à evolução técnica, ultrapassaram os paradigmas da guerra fria. Uma coisa é alguns especialistas preverem as estratégias; outra é obter, de um povo não mais seguro de seu direito de defesa, consenso político, verbas e autoridade para fazer frente a elas. Considere-se apenas um cenário, sublinhado pelo recente teste bem-sucedido da arma anti-satélite da China.
Diante dos desejos da China e de nossas alianças e interesses, uma guerra não é inconcebível em Taiwan ou na Coréia. Para remover da equação a escalada nuclear americana, a China não precisaria de paridade, mas apenas de um fator de dissuasão, como o que possui há tempos. Mas os chineses, cujos limites para o uso de armas nucleares são diferentes dos nossos, teriam outras opções. Eles sabem que todos os aspectos da economia, das Forças Armadas e da sociedade dos EUA dependem de dispositivos eletrônicos individuais e em rede. Se todos falhassem ao mesmo tempo, o país ficaria paralisado, talvez por anos.
Na perspectiva da vitória, ou da derrota, eles poderiam optar por detonar meia dúzia de cargas nucleares de alta megatonagem na mesosfera, num ataque de pulso eletromagnético (EMP) que talvez nem invadisse o espaço aéreo americano, cozinhando quase todos os circuitos e semicondutores, deixando o governo dos EUA cego, surdo e mais mudo do que já é e tornando o país incapaz de resistir às incursões que se seguiriam.
Sem dúvida, responderíamos à altura, mas a China não é tão tecnicamente dependente quanto nós. Considerando a capacidade da China para um contra-ataque, não poderíamos dissuadi-la de lançar um ataque EMP com a perspectiva da retaliação em massa, especialmente porque um ataque EMP, sem vítimas imediatas, pareceria pacífico como a neve no ar calmo.
O truque na estratégia nuclear é manter a estabilidade equilibrando potenciais e assim desencorajando a transformação de hipóteses em eventos reais. É necessário o replanejamento eletrônico de sistemas e redes essenciais; e a defesa antimísseis, que fecharia a janela do primeiro ataque ao proteger nossa capacidade de revidar, nos protegeria de um ataque EMP e sobretudo dissuadiria a China ao tornar menos seguro seu próprio fator de dissuasão.
Assim, reduziríamos as possibilidades de a China se sentir tentada a vencer uma guerra nuclear sem travar uma guerra nuclear. Considerando, porém, que ignoramos alertas explícitos da comissão sobre EMP do Congresso, quais as chances de agirmos segundo uma opinião que nem sequer formamos? Com relação à guerra e às ações para evitá-la, já não temos confiança nem visão clara. É uma pena termos ido tão longe para descobrir que nossos rivais podem nos superar porque metade dos políticos perdeu a inteligência e a outra metade, a coragem.