Título: Antiamericanismo sem lastro
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/03/2007, Notas e Informações, p. A3

O que mais chama a atenção nos protestos que precederam o desembarque do presidente George W. Bush em São Paulo é o primarismo do antiamericanismo embutido nesses ataques. Expressões de repúdio ao seu desempenho como líder da mais inspiradora nação democrática do mundo ele as faz por merecer, por uma profusão de motivos tidos e sabidos. Vão desde a ab-rogação de consagrados direitos civis em seu país e a inédita concentração de poderes na Casa Branca à adoção rotineira da tortura como recurso legítimo na sua propalada ¿guerra ao terror¿, numa afronta sem precedentes às convenções internacionais sobre tratamento de prisioneiros, de que os Estados Unidos são signatários. Em virtude desse calamitoso retrospecto, que pode ser destilado numa só palavra - Iraque -, hoje em dia mais de 2/3 dos seus compatriotas condenam o seu governo, nascido, de resto, de uma grossa fraude eleitoral no Estado dirigido por seu irmão.

Mas quando um punhado de gatos-pingados - cerca de 50 militantes do PSOL - se junta no gramado diante do Congresso, tendo como madrinha a fanatizada ex-senadora Heloísa Helena, para queimar Bush em efígie, o que gostariam de incinerar, na realidade, seria a bandeira das estrelas e listras. A substituição é eloqüente. Bush pode ser detestado por muitos daqueles brasileiros interessados em política internacional - eles próprios uma parcela insignificante da população. Mas não existe no País nada parecido com um arraigado sentimento antiamericano, pela razão elementar de que, ao longo da história, Brasil e Estados Unidos nunca tiveram problemas suficientemente impactantes para atiçar no povo um sentimento de antipatia, muito menos de hostilidade, à potência do Norte. Tampouco a cultura de massa brasileira abriga preconceitos contra os Estados Unidos. Se algo se pode dizer com segurança a respeito é que se trata do contrário - há muito.

Pode exasperar o duro tratamento que os concidadãos que migraram clandestinamente para os EUA recebem das polícias locais, quando apanhados, ou as inexplicáveis recusas de concessão de vistos temporários a outros nacionais, até quando convidados por organismos internacionais ali sediados. Mas ninguém em sã consciência acusará os americanos, nem mesmo as suas autoridades, de nutrir preconceitos antibrasileiros. De novo é o caso de dizer que, se algo prevalece, é o contrário. E poucos hão de ser os lugares no mundo em que um americano se sinta tão bem como aqui. O Brasil definitivamente não é um dos países com os quais os EUA compartilham um passado conturbado por disputas e desavenças, nem tem, diferentemente do México, uma relação de amor e rancor com los gringos. ¿Só na América Latina o antiamericanismo figura como alicerce estrutural do pensamento de esquerda¿, escreveu ontem no Estado o sociólogo Demétrio Magnoli. No Brasil, nem tanto.

Comparado com os vizinhos, e em proporção às populações dos seus países, o País decerto divide com o Chile a condição de ser o mais filoamericano. Imagine-se o fracasso de público que seria em São Paulo um comício contra o ¿Império¿, como o que será protagonizado sábado em Buenos Aires pelo presidente venezuelano Hugo Chávez e o seu cliente oportunista Néstor Kirchner. Em que pesem as mazelas sociais brasileiras, é improvável que pudessem ser exploradas no País por um tipo como Chávez para fomentar o ódio aos Estados Unidos. Prova disso é a preocupação de Lula em distinguir nitidamente as suas relações pessoais com Bush dos trejeitos terceiro-mundistas da política comercial do Itamaraty, que o governo nega que se devam a um viés antiamericano, do gênero bolivariano. Restam os carbonários de sempre: as viúvas do guevarismo da UNE e do PT radical, o filochavista João Pedro Stédile, que comunga com o caudilho da aversão à ¿democracia burguesa¿ e comanda as ações do MST e da Via Campesina.

Quando se quer indispor a sociedade brasileira com os Estados Unidos, tudo é pretexto - até a cooperação entre Brasília e Washington na área do biocombustível. Para os seus detratores, o aumento da produção brasileira de etanol de cana, no quadro desse acordo, diminuirá a oferta de alimentos. Esses grupos fazem barulho e provocam distúrbios. Mas a sua influência na ordem das coisas é desprezível.