Título: Ou se aplica, ou se revoga a lei
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2007, Notas e Informações, p. A3
Como diria o ex-juiz de futebol e crítico de arbitragens Arnaldo Cezar Coelho, ¿a regra é clara¿. Em 1992, o Congresso aprovou e o presidente Itamar Franco sancionou a Lei de Improbidade Administrativa, pela qual todo agente público - que, por eleição, nomeação, designação ou contratação, tem mandato, cargo, emprego ou função em qualquer dos Poderes federais, estaduais ou municipais - pode ser processado por improbidade administrativa. Não paira nenhuma dúvida sobre o significado da expressão, consagrada já no direito romano, nem sobre o conceito de agente público - nem, tampouco, sobre a legitimidade da abertura de ações contra acusados de improbidade em instâncias inferiores do Judiciário.
Mas, sendo o Brasil a bagunça institucional que é, desde 2002, um decênio depois da promulgação da lei, se espera que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida se ela se aplica a detentores de mandatos e cargos no Executivo e no Legislativo, protegidos pelo instituto do foro privilegiado (só o Supremo pode processá-los). A Corte foi solicitada a sustentar a supremacia do privilégio pelo embaixador Ronaldo Sardenberg, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e presidente indicado da Anatel. Acusado de improbidade por ter usado um avião da Força Aérea, quando ministro, para viajar em férias, ele pleiteia a anulação da ação por não ter se originado no foro especial a que tinha direito.
Sete dos 11 ministros do STF - entre eles quatro que já se aposentaram - votaram no caso. Seis deles a favor de Sardenberg, ou seja, a favor da tese de que a lei não se aplica aos políticos e autoridades privilegiadas. Não se sabe quando a instituição dará a palavra final na matéria. Se depender do seu ex-presidente Marco Aurélio Mello, o processo deveria ser reiniciado da capo. Isso porque, numa ação similar futura, os atuais ministros poderiam ter entendimento diverso daqueles que se aposentaram, criando um conflito de interpretações. E, embora improvável, não é impossível, nem seria inédito, que algum ministro da ativa mude o seu voto, complicando ainda mais a equação.
De todo modo, quando e se o STF decidir que os agentes públicos blindados pelo foro privilegiado não podem ser alcançados pela Lei de Improbidade, mas apenas pela mais branda Lei de Responsabilidade - cuja aplicação em cada caso depende de autorização legislativa e que não obriga os condenados nem a pagar multa, muito menos ressarcir o erário dos prejuízos resultantes de seu comportamento ímprobo -, 10 mil processos do gênero, segundo cálculos conservadores, que tramitam em instâncias inferiores, serão necessariamente arquivados. Políticos conhecidos como Paulo Maluf e o ex-prefeito de Ribeirão Preto Antonio Palocci terão o que celebrar. É bem verdade que a questão tem um outro lado - o uso da lei de 1992 para perseguir autoridades por motivos políticos.
Na sessão de anteontem do Supremo, o ministro Gilmar Mendes - ex-advogado-geral da União e ele próprio, à época, alvo de ação ainda em curso por improbidade - atacou duramente os procuradores federais do Distrito Federal Guilherme Schelb, Luiz Francisco de Souza e Valquíria Quixadá, de cujas histórias, disse, ¿nem preciso falar¿. Ele ainda classificou de ¿escandalosa¿ a ação proposta em dezembro pelos procuradores Raquel Branquinho e José Alfredo de Paula Silva contra o deputado pernambucano Raul Jungmann, do PPS, acusado de desvio de R$ 33 milhões no Incra, quando ministro do Desenvolvimento Agrário. ¿Por que o procurador-geral (a única autoridade apta a ir ao Supremo contra autoridades privilegiadas) não abriu inquérito criminal?¿, cobrou.
Mendes teve o apoio do colega Cezar Peluso. A lei da improbidade ¿é um instrumento que serve de abuso político notório¿, constatou. Pode-se argumentar que o sistema judicial, quando funciona adequadamente, dispõe de anticorpos para neutralizar iniciativas legais torpes. O ex-secretário presidencial Eduardo Jorge Caldas Pereira conseguiu desativar na Justiça todas as minas postas no seu caminho pelos Torquemadas do Ministério Público, encabeçados pelo ex-militante petista Luiz Francisco de Souza. Mas de duas, uma: ou a lei da improbidade vale para os agentes públicos, sem distinção, ou é melhor revogá-la de vez.