Título: Um baú sem fundo de embromações
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2007, Notas e Informações, p. A3

No dia 3 de março de 2006, os jornais brasileiros transcreveram os principais trechos de uma extensa entrevista do presidente Lula à revista londrina The Economist, incluída, juntamente com um editorial elogioso, na edição que começava a circular naquela sexta-feira, às vésperas de sua visita de Estado à Grã-Bretanha. Numa passagem, perguntado por que o PIB brasileiro cresceu apenas 2,3% no ano anterior, ele respondeu: ¿No Brasil, não estamos com pressa de fazer a economia decolar imediatamente. Primeiro, cuidamos de consolidar a base macroeconômica. Não quero um crescimento de 10% ou 15% ao ano. Quero um ciclo de crescimento sustentável de 4% ou 5%.¿ Passados 12 meses, confrontado com mais uma evidência de que a realidade teima em negar o que ele quer - o PIB de 2006 não chegou nem a 3% -, Lula não se deu por achado e ligou o piloto automático.

Começou por dizer que o crescimento econômico não depende da vontade do presidente ou do governo - o que é parte obviedade, parte mistificação. E elaborou, se é que o verbo se aplica: ¿O PIB só vai crescer na medida em que se crie uma dinâmica no País em que as pessoas acreditem que as coisas estão sendo feitas com seriedade.¿ Que quer dizer isso? O mesmo que quer dizer ¿não quero um crescimento de 10% ou 15% ao ano¿. Ou seja, rigorosamente nada, afora expressar um movimento defensivo reflexo, típico de quem está desprovido de argumentos objetivos diante de verdades incômodas. Na frase de agora do presidente, substitua-se ¿o PIB só vai crescer na medida em que¿¿ pelo que venha à cabeça, e não fará a menor diferença: fatos positivos de qualquer espécie só ocorrem ¿quando as coisas estiverem sendo feitas com seriedade¿. Para tanto, porém, Lula precisaria antes de tudo falar sério.

Dispensa-se desse desafio porque o Brasil elegeu e tornou a eleger um chefe de governo excepcionalmente apto a tirar proveito do escasso espírito crítico de suficiente parcela da população. A julgar pelo noticiário, o contingente de brasileiros que acreditam no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) supera até o dos eleitores de Lula no segundo turno. Isso o credencia a recorrer com incontida desenvoltura ao seu baú sem fundo de meias-verdades e embromações que formam o que já se chamou a sua ¿quase-lógica¿. Exemplos do dia: ¿Precisamos dar as mãos e sair para fazer o Brasil crescer, e aqueles que não quiserem, paciência, fiquem num canto chorando, se lamuriando.¿ E ¿a gente pode até fazer uma crítica às coisas que aconteceram no passado, mas a gente tem que pensar no futuro¿. O Conselheiro Acácio o aplaudiria em cena aberta. O pior é que a fórmula serve para todo e qualquer assunto.

Na mesma quarta-feira em que desconversou quando cobrado pelo magro PIB de 2006, foi instado a se manifestar também sobre os dados acachapantes do Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros, divulgado na véspera. Não teve dúvidas. ¿A questão da segurança é uma questão que hoje não tem um culpado, não tem dono, não tem um inocente¿, pespegou. ¿Acho que todos nós, governantes e não governantes, temos uma parcela de culpa.¿ A mágica não funcionaria se lhe faltasse a capacidade de persuasão que soube tornar indissociável de sua própria figura e que se realimenta do próprio palavreado da sua esperta retórica. A mensagem do presidente, a rigor, é ele mesmo - com a vantagem de ninguém lhe fazer sombra no palco. Por seu gasto repertório, o espetáculo é cada vez mais aborrecido para todos quantos não se podem furtar a acompanhá-lo - como é o nosso caso - pelo imperativo profissional de informar a opinião pública e opinar sobre a conduta da mais alta autoridade do País.

Se há um ano Lula se vangloriava do seu zelo em ¿consolidar a base macroeconômica¿, agora se gaba de que ¿só podemos falar em crescimento (?) porque a economia está arrumada¿. Há um ano, dizia que não estava com pressa para fazer a economia decolar. Agora, diz que não tem pressa de mexer no Ministério. Ele até se permitiu fazer um jogo com as palavras pressa e pressão: não tem a primeira porque se considera imune à segunda. ¿Penso que poucas vezes na história um presidente trabalhou sem pressão como estou trabalhando¿, alardeou. Poderia então trabalhar mais e discursar menos, cumprindo a promessa de ¿diminuir tudo que estiver criando entrave para o desenvolvimento¿.