Título: Espírito do Ano do Porco
Autor: Carneiro, Dionísio Dias
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2007, Economia, p. B2

O Ano-Novo do Porco, no calendário chinês, começou com pouco espírito de ano-novo, e muito espírito de porco. As Bolsas em todo o mundo foram derrubadas no dia 27 de fevereiro, a partir de um movimento de vendas na Bolsa de Xangai. Não por uma piora nos fundamentos que determinam a lucratividade esperada das empresas chinesas, mas porque burocratas ameaçaram corrigir exageros dos que acreditam que os preços de ativos chineses vão aumentar. Declarações de advertência, que pretendem defender os investidores de ações fantasmas, coincidiram com dados negativos de vendas de duráveis e declarações de instituições que financiam ativos baseados em recebíveis imobiliários nos EUA de que não mais aceitariam ativos sujeitos à inadimplência. Essas manifestações caíram como uma luva para os que enxergavam, nos ganhos rápidos deste ano, círculos viciosos de valorização da riqueza financeira e expansão do financiamento, que encorajavam a negligência com as avaliações de risco. Greenspan contribui a seu modo, reavivando a memória da irracionalidade que pode estar por trás da atual exuberância dos mercados.

Bolhas de ativos? Períodos de alta de preços de ativos geram a agradável sensação de que não há conflitos, de que estamos todos juntos e isso dá confiança ao rebanho de compradores. O otimismo contagiante, de vez em quando, é perturbado apenas por algum espírito de porco. Em geral, esses espíritos habitam os bancos centrais, onde se plantam as raízes do dinheiro barato que sustenta a exuberância.

Nos mercados de ativos, movimentos expansionistas são semelhantes aos contracionistas. Num mundo menor, por causa da circulação rápida da informação, a razão principal para os movimentos de venda é a mesma dos movimentos coletivos de compra. Como diz uma famosa canção americana, o que excita é a sensação de proximidade, que causa o conforto nos movimentos ousados de compra; já nas ondas de desconfiança, o desconforto pelo contágio aumenta. Essa sensação de proximidade, apesar das distâncias geográficas, culturais, institucionais e conjunturais, provoca calafrios nos gestores quando não entendem como seus ativos, que pareciam, há poucos dias, estar tão distantes dos altos riscos, derretem nas telas de seus terminais.

O espírito deste Ano do Porco ilustra os dois lados do sucesso das políticas monetárias modernas. São menores, hoje, os riscos de inflação, as volatilidades cambiais e a duração das recessões. Menores riscos diminuem os prêmios, tornam os ativos mais ¿parecidos¿ nas carteiras dos investidores. Em compensação, os bancos centrais são menos potentes para influenciar tanto o câmbio quanto o crédito.

Nos bons momentos, essa impotência é benéfica, pois abre espaço, por exemplo, para ministros dizerem bobagens e ninguém prestar atenção. As famílias que acumulam suas economias, para se protegerem do desemprego, da velhice e da doença, são atraídas para aplicações arriscadas. Em São Paulo, em Connecticut ou em Xangai, poupadores se sentem tolos por estarem preservando suas riquezas financeiras a taxas de juros sem prêmio de risco. O mesmo crédito barato financia o consumo e também posições especulativas além do que recomendaria a prudência. Empalidecem, nas escolhas internacionais de investimento, os riscos cambiais e as diferenças de jurisdição. Só a longo prazo, os fundamentos econômicos dirão se rendimentos maiores refletiam riscos maiores ou apenas senso de oportunidade dos gestores diante de menor custo de capital.

Nos maus momentos, os bancos centrais nem sempre podem contrabalançar contrações muito rápidas da liquidez. Sabendo disso, os gestores tornam-se hipersensíveis a mudanças, correm para perto da porta de saída ao menor sinal de reversão e agravam as perdas de riqueza.

O espírito de porco se encarrega do resto: diante dos riscos geopolíticos, o mundo real parece incompatível com baixos prêmios de risco. Propostas de intervenções, impostos e barreiras para proteger os investidores dos especuladores. Maior poder discricionário, maiores prêmios de risco.

Enquanto Henrique Meirelles tentava exorcizar, no Senado, os espíritos de porco locais, a moeda brasileira se valorizava, em pleno movimento de fuga ao risco em todos os mercados, e ninguém falava em moratória. Não é uma correção de exageros, benéfica para a melhor alocação de recursos no mundo, o que preocupa, mas, sim, a falta de memória.