Título: Turbulências globais
Autor: Goldfajn, Ilan
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2007, Espaço Aberto, p. A2

Começou com uma queda forte na Bolsa da China. Eram rumores sobre a imposição de controles e imposto nas ações chinesas. Foram desmentidos no dia seguinte, mas os investidores já olhavam com mais cuidado para o risco que estavam correndo em outros ativos e lugares do mundo. Nenhum ativo com risco resistiu a esse olhar mais ansioso. Já faz uma semana de queda nos mercados, globalmente. Evento suficiente para levantar a pergunta mais relevante: será apenas uma correção de exageros no mercado financeiro ou, após anos de boas notícias, sinal de mudanças na economia mundial, com conseqüências negativas para todos?

A resposta não é trivial. Normalmente, os sinais são dúbios. Os analistas freqüentemente descobrem as recessões após os dados saírem e debatem as suas causas por décadas após o evento.

O problema é que várias políticas econômicas no mundo não resistiriam num ambiente mundial pior. Por exemplo, o que aconteceria com o déficit externo elevado da Turquia? E com a inflação alta na Argentina? O que acontecerá com a Venezuela se o petróleo cair?

No Brasil, o desempenho das contas externas nos últimos anos e a conseqüente queda da dívida externa e exposição cambial oferecem uma defesa contra futuros problemas. O mesmo não se pode dizer das contas públicas: há pouca flexibilidade para cortar gastos, a arrecadação continua muito alta e a dívida pública como proporção do PIB não recuou como deveria. Uma desaceleração mundial deve dificultar a administração da política fiscal.

É claro que o movimento de preços nos mercados pode não ter relação com qualquer avaliação de cenários. Há momentos de exageros nas valorizações dos ativos que podem levar a quedas corretivas, como bolhas especulativas que são dissipadas após um tempo.

Mas a busca por indicadores antecedentes de cenários já começou e, inevitavelmente, se concentra na economia americana, o motor do crescimento mundial. Recentemente, o PIB americano tem crescido a taxas próximas de 2% ao ano, abaixo do observado nos últimos anos, e já há estimativas de que este ano começou no mesmo ritmo. Boa parte da explicação se encontra no estouro da última bolha da economia americana: o extravagante mercado imobiliário e seus preços crescentes. Para a frente, há dois cenários alternativos.

O primeiro vê mais a desaceleração do PIB americano como resultado da futura queda do consumo. Essa queda seria o resultado de uma menor riqueza percebida dos donos das casas cujos preços já caíram (e devem cair mais) e também do futuro enfraquecimento do mercado de trabalho (salários mais baixos e menos emprego) em alguns setores da indústria. Além do mais, a subida da taxa de juros nos últimos anos - de 1% para 5% - ainda não teve o impacto total na economia devido às defasagens naturais. Se o Fed tiver de atuar, provavelmente reduziria a taxa de juros até o fim do ano. Esse cenário se baseia nos dados recentes do mercado imobiliário - inclusive do aumento do prêmio de risco dos tomadores de empréstimo de segunda linha (subprime)- e do fraco desempenho recente da indústria.

O segundo cenário ressalta a flexibilidade da economia americana e acredita que a queda do mercado imobiliário está (e vai continuar) sendo absorvida naturalmente pelo resto da economia. O consumidor americano continua firme nas compras e não há sinais de fraqueza no mercado de trabalho como um todo. A desaceleração da indústria está sendo em parte compensada pelo crescimento contínuo do setor de serviços. Além disso, como as empresas em geral continuam lucrativas e os juros reais não estão altos historicamente, as condições financeiras continuam benignas. Nesse cenário, não há desaceleração no horizonte. O risco, se há algum, é, ao contrário, a inflação incomodar no futuro e o Fed ter de voltar a subir os juros.

Avaliando os dois cenários, é mais provável, de fato, ocorrer uma desaceleração suave na economia americana, mas com flexibilidade suficiente para não desembocar numa recessão. Mas o que significa isso para o mundo?

Alguns acreditam que essa desaceleração será compensada por crescimento robusto no resto do mundo, como na Ásia e na Europa. A indústria na Alemanha tem crescido mais do que no resto do mundo, o Japão finalmente saiu da estagnação de décadas e a China continua crescendo a taxas de dois dígitos. Essa visão é baseada no fato de a demanda interna nesses países estar ganhando espaço relativo ao setor exportador. Sou cético quanto à capacidade de o resto do mundo crescer independente da economia americana. A razão é que produção crescente da Ásia (a chinesa, por exemplo) desemboca, no final da linha, no consumidor americano. E o crescimento da demanda interna nesses países tende a ser dominado por investimento, e não pelo consumo. Mesmo os investimentos na Ásia dependem de um bom mercado exportador, na falta de um mercado consumidor local mais forte.

Em suma, está muito cedo para saber se a recente turbulência nos mercados significa algo mais substancial. Há boa chance de a tranqüilidade voltar aos mercados e o bom momento econômico mundial persistir, com a economia americana desacelerando naturalmente, sem grandes solavancos. Mas há que ter consciência de que, de fato, estamos entrando em outra fase do ciclo, como disse recentemente Alan Greenspan (ex-presidente do Fed e ídolo de muitos). Por melhores que tenham sido os últimos anos, e por mais otimista que tenha ficado o mercado, ainda não se conseguiu abolir o ciclo econômico. O que significa, em termos simples, que tudo o que sobe pode descer. Este pode ter sido o maior recado transmitido pelos mercados nos últimos dias.