Título: A visita de Bush
Autor: Sotero, Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2007, Espaço Aberto, p. A2
O conselheiro internacional do Palácio do Planalto, Marco Aurélio Garcia, disse no mês passado a um interlocutor, à margem de uma conferência na República Dominicana, que a relação entre o Brasil e os Estados Unidos é hoje ¿muito melhor¿ do que foi sob os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton. Típica dos exageros do discurso diplomático às vésperas de encontros presidenciais, a afirmação não corresponde à realidade dos fatos. Pode, no entanto, revelar-se profética se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva usar a visita de seu colega americano a São Paulo, esta semana, para começar a traduzir em ações o desejo, que revelou recentemente a um influente empresário do Sul, de investir mais no aprofundamento dos laços com os Estados Unidos em seu segundo mandato.
Se assim proceder, o presidente criará as condições políticas para que seu novo embaixador do Brasil em Washington, Antonio Patriota, e a competente equipe de assessores econômicos que o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, escalou nas últimas semanas no Itamaraty possam efetivamente explorar a oportunidade de cooperação que a visita do líder dos Estados Unidos traz na área dos biocombustíveis. Para tanto Lula terá de conter a propensão de setores do governo a usar a tarifa protecionista dos Estados Unidos ao etanol como tema de início de conversa, o que pode matar na origem o projeto de cooperação, e, em vez disso, transformá-lo em objeto de negociação, como querem os produtores nacionais. O presidente brasileiro contribuirá, desta forma, para elevar o diálogo bilateral a um novo patamar, dando conteúdo e foco à relação cordial e madura estabelecida na era FHC-Clinton e que ele e Bush tiveram o mérito de preservar - e, quem sabe, para tornar realidade algo que seu antecessor anteviu seis anos atrás.
Ainda que cause irritação no Planalto lembrar os elementos de continuidade entre os governos de Lula e de Fernando Henrique, mesmo quando estes operam a favor do Brasil e revelam o melhor de ambos os líderes e do País, vale recordar o que o ex-presidente disse em entrevista que concedeu aos jornalistas brasileiros em abril de 2001, na véspera da instalação da Cúpula das Américas realizada na cidade canadense de Québec, sobre a negociação da Área de Livre Comércio das Américas, que era o tema daquele momento, e o interesse então já crescente nos Estados Unidos pelo etanol: ¿A cooperação em pesquisa, produção e comercialização do etanol é um caminho que os dois países, obviamente, devem explorar se quisermos falar a sério sobre integração econômica do Hemisfério.¿
O despertar do impopular Bush, por necessidade política doméstica, para a realidade do aquecimento global provocado pela queima de combustíveis fósseis, o interesse dos Estados Unidos e do Brasil (ainda que não assumido publicamente pelo governo Lula) de conter o avanço do populismo chavista e preservar a estabilidade na América do Sul e, talvez, até o desejo da administração petista de responder com fatos às acusações de seu ex-embaixador em Washington Roberto Abdenur sobre a existência de um viés antiamericano no governo brasileiro impelem hoje Brasília e Washington a falar seriamente sobre o assunto do etanol. Gregory Manuel, o assessor especial da secretária de Estado Condoleezza Rice, que fez meia dúzia de visitas ao Brasil desde que assumiu o posto, em outubro, disse numa conferência sobre a dinâmica global dos biocombustíveis, realizada no Woodrow Wilson International Center for Scholars, em Washington, no final de fevereiro, que a administração Bush vê a cooperação bilateral na expansão da produção e do mercado mundial de etanol como algo ¿transformador¿ das relações bilaterais e hemisféricas. Everton Vargas, o novo subsecretário-geral de Assuntos Políticos do Itamaraty, afirmou em visita à capital americana que o etanol ¿é um tema estruturante¿ do diálogo Brasil-Estados Unidos.
Uma iniciativa americana, a ofensiva de usar o etanol para engajar o governo brasileiro num diálogo mais denso é ilustrada pela própria decisão do presidente George W. Bush de realizar sua segunda visita ao Brasil num intervalo de apenas 15 meses e de fazer dela o ponto de partida de uma viagem por quatro outros países da região. Concebida por dois diplomatas de carreira treinados a pensar sobre diplomacia como política de Estado, além dos limites dos mandatos presidenciais - o subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, Nicholas Burns, e o secretário de Estado adjunto para o Hemisfério Ocidental, Thomas Shannon -, a estratégia tem por objetivo último dar substância e operacionalidade às convergências que Washington identifica nos interesses do Brasil e dos Estados Unidos no Hemisfério e no mundo.
¿Isso não é relações públicas, tem substância¿, observou há dias ao jornal Miami Herald a ex-embaixadora dos Estados Unidos em Brasília Donna Hrinak, hoje vice-presidente para a América Latina da Kraft Foods. ¿É uma questão concreta, com muito potencial para os dois países.¿ Para tornar esse potencial realidade e justificar o otimismo de Marco Aurélio Garcia, o presidente Lula terá, no entanto, de romper com o padrão de comportamento que seu governo exibiu depois de seus dois encontros anteriores com Bush, em junho de 2003 e novembro de 2005. Ambos resultaram na criação de vários grupos de trabalho que pouco ou nada produziram, por razões que tanto Donna Hrinak como seu sucessor, John Danilovich, atribuíram mais tarde à falta de empenho do lado brasileiro, em especial, do Itamaraty. A visita de Bush é a terceira - e última - oportunidade para Lula dar conteúdo à cooperação bilateral e desmentir os que o criticam como um presidente de muitas palavras e poucas ações.