Título: Morre d. Ivo, contestador da ditadura
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2007, Vida&, p. A14
D. José Ivo Lorscheiter, bispo emérito de Santa Maria (RS) e ex-presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), morreu ontem à tarde, na cidade gaúcha, aos 79 anos. Ele completaria 41 anos de ministério episcopal hoje.
O religioso estava internado no Hospital de Caridade desde o dia 25 de fevereiro com arritmia cardíaca e infecção generalizada. Seu estado de saúde se agravou no domingo e exigiu uma cirurgia - a segunda em duas semanas - para retirada de parte do intestino. A operação foi insuficiente para reverter a situação. D. Ivo morreu de falência múltipla de órgãos.
Poucos minutos depois da notícia de sua morte, os fiéis já lotavam a catedral de Santa Maria. O velório começou às 18 horas e o enterro está marcado para as 16 horas de hoje, na cripta da Basílica da Medianeira.
Primeiro como secretário-geral (1971-1978) e depois como presidente (1979-1986), d. Ivo dirigiu a CNBB durante os anos mais difíceis do regime militar (1964-1985). Ajudou as famílias de presos políticos que recorreram à mediação da Igreja, denunciou torturas e assassinatos, defendeu padres, freiras e colegas de episcopado que foram processados ou ameaçados de prisão.
D. Ivo enfrentou os generais da ditadura com determinação e coragem. Desempenhou papel relevante nos episódios que envolveram os bispos d. Pedro Casaldáliga nos conflitos de terra em São Félix do Araguaia (MT); d. Waldir Calheiros no confronto com militares do Exército em Volta Redonda (RJ); e d. Adriano Hipólito, seqüestrado no Rio supostamente por agentes de segurança da Baixada Fluminense.
Na comissão bipartite que reuniu oficiais das Forças Armadas e bispos da CNBB em negociações informais em busca de solução para a crise entre Estado e Igreja, d. Ivo foi a voz mais crítica. Por isso, era odiado pela linha dura do regime militar.
¿Para denegrir sua imagem, os serviços de informações circularam fotografias forjadas de d. Ivo com uma mulher no cinema¿, informa o historiador norte-americano Kenneth P. Serbin, no livro Diálogos na Sombra, sobre as relações entre Igreja e governo nos anos 70. Eram imagens grosseiras, mas que tiveram grande divulgação na época.
SOBRENOME
Gaúcho de São Sebastião do Caí, d. Ivo deveria ter o mesmo sobrenome de seu primo d. Aloísio Lorscheider, três anos mais velho, mas foi registrado como Lorscheiter por um equívoco do escrevente do cartório. Os dois primos, que encararam com bom humor essa troca de letras, sempre fizeram questão de dizer que eram parentes.
Filho de agricultores descendentes de imigrantes alemães, d. Ivo foi para o Seminário de Gravataí aos 11 anos. Foi ordenado sacerdote em 1952, em Roma. De volta ao Brasil, trabalhou como reitor e professor do Seminário de Viamão.
Apesar de ter ocupado cargos importantes na direção da CNBB, d. Ivo não chegou a ser arcebispo. Foi bispo auxiliar de Porto Alegre de 1966 a 1974 e depois bispo diocesano (titular) de Santa Maria por quase 30 anos. Nessa diocese, incentivou as comunidades eclesiais de base. D. Ivo apoiou também os padres da Teologia da Libertação.
Tanto a Teologia da Libertação como as comunidades eclesiais de base eram acusadas de usar instrumentos marxistas na defesa dos excluídos, daí a desconfiança da ditadura e do Vaticano.
O religioso era de temperamento fechado e de pouco contato com a imprensa, mesmo quando respondia pelo setor de comunicação da CNBB. Atendia os jornalistas com afabilidade, mas quase nunca tinha nada a dizer além das declarações oficiais.
Mesmo aposentado, quando renunciou ao governo da diocese de Santa Maria (RS) ao completar 75 anos de idade, manteve a discrição. Não gostava de falar sobre sua atuação política nem sobre os acontecimentos dos quais participou em nome do episcopado.
D. Ivo Lorscheiter falava fluentemente alemão, italiano, espanhol e latim.
REFERÊNCIA DE DIÁLOGO
O presidente Lula, em nota oficial, lamentou a morte. ¿É com profunda tristeza que recebo a notícia da morte de meu querido amigo d. Ivo Lorscheiter¿, afirmou, ¿esse ser humano maravilhoso, que deixa para todos nós um exemplo de vida e de dedicação às boas causas¿.
O atual presidente da CNBB, d. Geraldo Majella, lembrou que d. Ivo, ¿com sua tenacidade, imprimiu um forte espírito de fraternidade entre os bispos¿ na época em que esteve à frente da entidade. ¿É a perda de um grande bispo e de um verdadeiro amigo¿, disse.
O secretário-geral da CNBB, d. Odilo Scherer, afirmou ter recebido ¿com dor¿ a notícia da morte. ¿Ele foi uma pessoa muito importante na CNBB, um grande bispo. Vai ficar como referência de diálogo entre a Igreja e a sociedade.¿
Um dos principais nomes da Teologia da Libertação, d. Pedro Casaldáliga, hoje bispo prelado emérito de São Félix do Araguaia, lembrou que d. Ivo protegia os religiosos perseguidos pela ditadura e até mesmo pelo Vaticano. ¿Ele, uma grande figura latino-americana, soube enfrentar com serenidade e firmeza a ditadura e os problemas com o Vaticano¿, recordou. ¿Eu me sentia muito protegido por ele naquela época perigosa e violenta.¿
O bispo auxiliar de São Paulo, d. Pedro Luiz Stringhini, também citou aquela época: ¿D. Ivo conduziu a CNBB com firmeza nos tempos mais sombrios do Brasil¿.
Para o rabino Henry Sobel, presidente do rabinato da Congregação Israelita Paulista, d. Ivo foi ¿um homem muito forte, de princípios¿: ¿Acreditava naquilo que pregava. Foi um grande defensor da liberdade humana¿.
O moderador do Conselho Mundial de Igrejas e presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil, pastor Walter Altmann, lembrou que o Conselho Nacional das Igrejas Cristãs (Conic) foi criado em 1982 sob influência de d. Ivo. ¿Ele se empenhou no estreitamento das relações entre as Igrejas e sempre demonstrou grande solidariedade aos excluídos¿, comentou.