Título: Brasileiros na Bolívia vêem sua 'terra prometida' ameaçada
Autor: Macedo, Fausto
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2007, Nacional, p. A20

Há dois Brasis na Bolívia de Juan Evo Morales Ayma. Um adoecido, filhos infelizes e descalços, sem água nem luz, sem Bolsa-Família, nem Renda Cidadã. Outro que produz de sol a sol, até debaixo de temporal, que planta e colhe arroz, milho e feijão, constrói no braço pontes sobre riachos no Estado do Pando e cria gado Nelore para corte e venda a 10 bolivianos (R$ 3, 50) o quilo da carne no gancho.

Mas há algo em comum entre esses dois Brasis - eles estão sob ameaça da febre nacionalista de Evo e sua reforma agrária. O presidente boliviano decretou o resgate da soberania na fronteira.

Cerca de mil famílias brasileiras, nessa região, se submetem a um dia-a-dia nervoso, de insegurança, à espera de uma sentença que pode ordenar sua expulsão da 'terra prometida' que foram buscar no país mais pobre da América do Sul.

Esses brasileiros cruzaram a fronteira escancarada, 3,4 mil quilômetros de linha seca e sem vigilância. Vivem e trabalham dentro de uma faixa de 50 quilômetros a partir da fronteira com o Acre. A Bolívia conta com 10 mil famílias de brasileiros espalhadas por outras regiões.

A Constituição do País de Evo, Artigo 25, proíbe estrangeiros vizinhos de terem propriedade nessa área.

Quase todos os brasileiros não têm um único documento, nem mesmo de identidade, que os livre da pressão que La Paz deflagrou há cerca de seis meses.

HOSTIS

O aperto vem a qualquer hora, também à noite. Patrulhas policiais chegam subitamente. Os homens fazem muitas perguntas, cobram títulos de posse da terra. São hostis.

Milícias paralelas entram em ação. Bandidos tomam a produção de muitas famílias sob ameaças de morte.

'Não tenho para onde ir, mas também tem muito boliviano clandestino no Brasil', protesta Maria Decilda do Nascimento, 38 anos e 9 filhos, oito vivos porque um a malária levou.

Ela mora no Lote São Luiz, a 60 quilômetros da zona franca de Cobija, a capital do Estado do Pando, na fronteira com Brasiléia, do lado brasileiro.

Decilda faz parte do Brasil que vive na miséria dentro do País de Evo. Nada produz, não tem bens, nem documento pessoal. Caiu na vala dos clandestinos.

Outros brasileiros, os que exploram o campo e dele tiram seu sustento, acreditam que estão de bem com as autoridades bolivianas.

A Fazenda Cachoeirinha, nos arredores da Comunidad Arroyo Pacay, pertence a Sebastião Gomes, de 43 anos, filho de pai paraibano e mãe amazonense.

São 220 hectares na Amazônia boliviana. Gomes ainda não tirou o título de posse, mas parece não ter pressa. 'Tô buscando', ele diz, abrindo um sorriso largo que revela um canino de ouro.

São boas as relações desse brasileiro com o governador do Pando, Leopoldo Fernández Ferreira, opositor de Evo, que em março contratou por 65 mil bolivianos (R$ 20 mil) Natal Gomes, irmão de Sebastião, para fazer a ponte de madeira sobre o riozinho Pacaê, a caminho de Trigueros, floresta adentro.

Na manhã de quarta-feira, Sebastião e Natal, alguns dos 17 filhos deles e mais 5 trabalhadores bolivianos já haviam derrubado 6 castanheiras parrudas e 3 cumaru-ferro que vão virar uma obra de 5 metros de largura por 12 de comprido.

MAPEAMENTO

Mapeamento do Ministério de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente boliviano indica que esses brasileiros arrendam áreas de plantação de soja sem respaldo em registros formais.

Dedicam-se também à extração da borracha, da madeira. Muitos são quebradores de castanha e trabalham por um punhado de bolivianos, a moeda do país que escolheram para viver. 'Muito brasileiro vive de centavos do lado de lá', denuncia Rosildo Rodrigues de Freitas, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre. 'É caso de polícia.'

ESPADA NA CABEÇA

'Os brasileiros estão com a espada na cabeça', alerta uma autoridade brasileira. 'Não há uma solução consistente.'

O Brasil quer evitar a deportação em massa porque teme que a medida será copiada pelo Paraguai, onde vivem cerca de 350 mil brasileiros. 'Se o Brasil aceitar que a Bolívia nos expulse, o Paraguai vai entender como uma sinalização e seguirá o mesmo caminho', observou um analista. 'Será um precedente muito grave.'

Em fevereiro, a Bolívia tentou desferir o golpe de misericórdia. Durante reunião em La Paz, o governo de Evo fixou para 31 de março a data-limite para desalojar os brasileiros. Brasília não aceitou e a Bolívia recuou, mas apontou um novo prazo.

Nem mesmo os R$ 20 milhões que o governo Lula pretende transferir por meio da Medida Provisória 354 para regularização fundiária e migratória na Bolívia fez recuar o assédio aos brasileiros.

Esse crédito, de acordo com parecer do deputado Nilson Mourão (PT-AC), relator da MP, 'tem por finalidade viabilizar medidas de fortalecimento da cooperação bilateral com a Bolívia, especialmente na área de desenvolvimento agrário e de agricultura familiar'.

Mourão advertiu para o fato de que o regresso em massa dos brasileiros provocaria novo foco de tensão, agora no Brasil, porque não haveria como acomodar a todos com emprego e moradia. 'A relevância e urgência desta proposição justificam-se pelo grande potencial de tensões que se criariam na fronteira com o desalojamento intempestivo de centenas de famílias brasileiras e a falta de alternativas viáveis para a sua reocupação socioeconômica no Brasil.'

O problema, na avaliação de Brasília, é que o País não tem nenhuma garantia de que o dinheiro da MP vai fazer a Bolívia mudar sua estratégia.

O governo Lula considera que Evo deveria promover alterações em sua legislação para regularizar a permanência dos brasileiros. 'A MP é uma tentativa de criar uma agenda positiva, apenas um triunfo da esperança sobre a razão', observa uma fonte do Palácio do Planalto.

'A situação na fronteira é delicada, uma questão social preocupante', define Ruth Cayami, diretora distrital do Serviço Nacional de Migração do Estado do Pando.

Ela disse que jamais expulsou brasileiros. 'O que pretendemos é respeitar as regras, cumprir as leis e a Constituição da Bolívia, sem que isso signifique romper as relações ou violar direitos, independentemente de nacionalidade, cultura ou condição.'

Ruth destacou que 'inspeções de campo' promovidas por agentes bolivianos identificaram 'muitos casos de brasileiros que vivem há muito tempo na Bolívia sem permissão, na ilegalidade'.

Limberg Rosell, diretor departamental do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra) da Bolívia, disse que cadastramento realizado em 2001apontou 200 famílias brasileiras em situação irregular. 'Muitas foram embora depois da notificação, mas transferiram as terras a outros', afirmou. 'A norma e os interesses bolivianos serão respeitados.'

PONTE

Enquanto a via diplomática não se entende, pela Ponte da Amizade, que liga Brasil e Bolívia, passam centenas de brasileiros todos os dias. A festa de inauguração, em agosto de 2004, reuniu o presidente Lula e seus colegas da Bolívia, na época Carlos Mesa, e do Peru, Alejandro Toledo.

Na placa, a mensagem otimista. 'Aqui nessa fronteira amazônica os limites foram superados pela vontade de nossos povos em estabelecer fortes laços de amizade. As cidades de Brasiléia e Cobija nasceram desse ideal. Movidos por esse sentimento os presidente do Brasil e Bolívia, na presença do presidente do Peru, inauguram nesta data a Ponte Wilson Pinheiro que simboliza o novo momento da história de integração dos países da América do Sul.'